A aluna Maria Eduarda, de cabelos vermelhos, não precisou concluir o ensino fundamental para compreender que a escola em tempo integral fora um dos capítulos mais sombrios de sua trajetória educacional. A escolha, entretanto, nunca lhe coubera – foi imposta pelo governo estadual à sua cidade, transformada em projeto piloto, com mais de 90% das escolas submetidas a essa nova realidade. Nos intervalos, entre conversas apressadas no pátio, ela percebia que o descontentamento não era apenas seu; os colegas compartilhavam da mesma frustração, sobretudo quanto às plataformas que simulavam redes sociais, prometendo proximidade, mas incapazes de forjar vínculos verdadeiramente afetivos.
Mesmo ainda imaturos, todos tinham clareza de um fato incontestável: leitores proficientes não se formam e se transformam da mera imitação dos algoritmos virtuais. Dos mais dedicados aos mais displicentes, odiavam passar o dia inteiro na escola, privados da chance de buscar um emprego ou de se aprimorar em um curso. Segundo sua versão, não eram só os alunos – os professores, igualmente enclausurados naquele esquema, viam sua vida social esvair-se. Sem tempo para compromissos pessoais, perdiam também sua autonomia, aprisionados em aulas previamente estruturadas em slides e plataformas que, para todos, eram apenas símbolos de um método impessoal, sufocante e detestável.
Nas conversas no pátio, teorizava Maria Eduarda, a impressão que se tem é a de que quando o aluno vai para o Ensino Médio a tendência é melhorar suas condições, já que o vínculo está estabelecido com a escola, as amizades fortalecidas; entretanto, diante da falta de estrutura, as meninas, por exemplo, recusam-se a fazer Educação física ou fazem “corpo mole”. “Ora, quem vai correr atrás de bola sabendo que não haverá possibilidade de tomar banho após os exercícios – ou utilizar o único tênis que possui em jogos inexpressivos ou treinos que ninguém sabe explicar a finalidade? ” É certo que alguns meninos, por gostarem muito de jogar bola, o fazem descalços, mas no caso das meninas isso piora, pois terão ainda que se dirigir oportunamente às salas de aulas sem banho, terminando o dia mal- cheirosas!
Segundo consta, tanto para ela quanto para seu grupo de companheiras a escola estava se tornando cada vez mais sombria e solitária. Gostava de ler, mas nesse tempo, como tudo estava se tornando virtual, as bibliotecas iam se tornando abandonadas e fantasmagóricas, com horários impróprios de funcionamento, quando, no mais das vezes, não estavam fechadas. Assim não se viam mais alunos portando livros, as argumentações limitadas e os assuntos iam se modificando, se tornando limitados e baseados no senso comum. Até mesmo os jogos, por serem repetitivos, já estavam ficando sem graça.
Mas, Maria Eduarda, dos cabelos vermelhos, era uma heroína da resistência, que mantinha o hábito de ler desenvolvido em casa, que por falta de uma companhia libertária lia apenas em casa durante à noite, seguindo hábitos de seus pais, que lhes apresentaram os clássicos ainda na infância; e por isso mesmo, tinha verdadeira devoção por Machado de Assis. Mas nas situações atuais das escolas, conversar com quem sobre leitura? Havia, inclusive, terminado namoro com um menino porque ele o tempo todo falava somente de jogos do campeonato de futebol europeu ou de um jogador nacional medíocre que gostava de ostentar apresentando grandes festas em suas redes sociais. Como formar vínculo? – diria um professor amargurado: “não pode haver cruzamento de jacaré com cobra d`água! Às vezes parava, refletia e em silêncio pensava: – que diria o Machado?
Quando chegou ao segundo ano do ensino médio, começou a desconfiar e, no terceiro ano, teve a certeza de que se tornara, na condição de leitora proficiente, uma espécie em extinção, como o jacaré do papo amarelo ou o lobo guará; inclusive quando começou a sentir algumas dores do lado esquerdo do peito. Os pais acreditavam que era em razão do estresse provindo da situação relatada, mas tinha medo de ser coisa pior.
Embora não gostasse de consultório médico, naquela sexta-feira, ficou feliz em ausentar-se das aulas tediantes para fazer exames de rotina. Como em consultórios médicos, acaba se esperando algum tempo, levou um livro de crônicas do Ruy Castro para ler, mas, para sua surpresa, foi chamada rapidamente.
A médica, doutora Sílvia, antes de fazer qualquer pergunta, olhou o livro e logo se encheu de curiosidade. Maria Eduarda levou um susto – estava acostumada com médicos sisudos, que evitam olhar nos olhos dos pacientes e realizam o trabalho de forma burocrática, como se fosse um peso a suportar. Mas, dessa vez, foi tudo diferente. Elas começaram a conversar sobre leituras comuns, e o tempo passou sem que se percebesse a demora. Ali, deitada na maca, ainda em consulta, a médica disse:
– De tudo que falamos há um santuário que todo humano deveria visitar antes de morrer!
– Que santuário é esse… ele tem nome….
– Sim, tem – Machado de Assis!
Pulou da maca, fosse o que fosse estava curada.
Gilmair Ribeiro é professor.