Hoje caminhei pelo Centro. Passei pela XV, fiz pequenas compras no Mercado Municipal, resolvi probleminhas cotidianos. Um casal de idosos, ambos de chapéu, andava despreocupadamente na calçada sob o calor do outono piracicabano. A vida corre de carro. Mas, para quem caminha, o dia parece mais longo e prazeroso.
Experimentei uma boa sensação de tranquilidade, no entanto, por vezes atormentada por pensamentos atribulados. A lembrança do 31 de março de 1964 me rondava e trazia de volta relatos do longo período de silêncio e dores que o país atravessou. Foram duas décadas de ditadura civil e militar que deixaram muitos mortos, sequelas irreparáveis e um sem número de problemas surgidos dos desmandos daquela época.
No dia 15 de março, quando a Nova República completou 30 anos, ao contrário de vermos nas ruas pessoas enaltecendo o regime democrático e nossa liberdade conquistada a sangue e lágrimas, vimos faixas e cartazes pedindo novo golpe militar.
Digo golpe, sim! Intervenção militar é eufemismo, assim como fora a chamada revolução de 64. Meio século depois do início de nosso mais recente período ditatorial, pessoas comuns saíram às ruas e pediram a deposição, com o uso das armas, de um governo eleito democraticamente pelo povo.
Esqueceram-se do que foi a ditadura? Provavelmente, não. É mais plausível pensar que sempre gostaram dela e esperam novamente seus efeitos nefastos, mas que a alguns poucos beneficia.
A história é cíclica. Feliz ou infelizmente, dependendo do caso e do ponto de vista. Ao mesmo tempo que nos afastamos daquele tempo sombrio, podemos estar nos aproximando de nova era de extinção das liberdades, usurpação dos direitos e usos e abusos da violência.
Temos desejos de democracia e de liberdade que ainda mobilizam a maioria dos brasileiros e tenho esperança em uma democracia cada vez mais consolidada. Mas ver nas ruas manifestações pedindo o retorno da ditadura, ainda que sob o singelo nome de intervenção militar, me dá arrepios. Me faz temer pelo ser humano.
Hoje, li dois textos que tratam da nossa desumanidade, ou justamente daquilo que nos faz tão diferentes dos outros animais: nossa capacidade de matar e destruir nossos semelhantes.
Raquel de Queiroz, na crônica Nós e a Idade Média, constata que o mundo e a sociedade mudaram. Mas que o ser humano continua o mesmo. “É que o animal humano não mudou, nem mudará […] Fala-se muito na crueldade e na bruteza do homem medievo. Mas o homem moderno será melhor? […] Deem poder e impunidade ao homem moderno, que ele procede igual ou pior que o bruto medieval.”
Lá em 1989, Raquel nos falava abstratamente a partir das reflexões acerca de um livro que lera sobre a Idade Média. Porém, Eliane Brum escreveu esta semana no Terra (http://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/30/opinion/1427726614_598600.html) a respeito de fatos do presente: “[…] mais de 90% dos brasileiros, segundo pesquisa realizada em 2013 pela Confederação Nacional dos Transportes, aprovam que se coloque adolescentes em prisões que violam as leis e os direitos humanos mais básicos, no quarto sistema carcerário mais populoso do mundo, em flagrante colapso e incompetente na garantia de condições para que uma pessoa construa um outro destino que não o do crime”. E na esteira da bancada da bala, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a redução da maioridade penal.
Há algo de terrível no ar. Mas acredito ainda na sociedade, na construção coletiva e na busca constante pela paz, para que os passeios no Centro sejam repletos de sol e harmonia.
Acredito em alguns seres humanos. Mas, do bicho humano, como um todo, tenho é muito medo.
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Wanderley Garcia é jornalista e professor do curso de jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep).
Wanderley, achei seu artigo muito lúcido, talvez porque você tenha traduzido exatamente o que penso e meu sentimento sobre tudo isso. E eu que me acreditava uma otimista incurável…