Batuque de Umbigada: tradição e identidade

Batuque de Umbigada: tradição e identidade

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“Eu já fui muito humilhada, vim dar minha resposta agora.

Entreguei na mão de Deus e também de Nossa Senhora.

Quem humilhar será humilhado, a eu venci minha vitória.”

(Anecide Toledo.

Mestre do Batuque de Umbigada de Capivari)

 

O Batuque de Umbigada remonta a tradições oriundas de uma ancestralidade africana. É no solo de mãe África que encontramos as raízes remotas dessa dança ritual, a cultuar a fecundidade. Preservado por grupos afrodescendentes, o Batuque de Umbigada é também fruto de um rico e belo processo de sincretismo cultural a aglutinar múltiplas contribuições. Elementos da cultura africana desfilam ao lado de crenças próprias do catolicismo popular e de concepções forjadas ao longo do complexo movimento de miscigenação e sincretismo, a moldar a cultura brasileira, em séculos de escravidão, diáspora, resistência e construção identitária.

No entanto, em um contexto de globalização, dimensões singulares e genuínas da cultura tendem a desaparecer. De certa maneira, globalização se tornou sinônimo de um intenso e perverso processo de padronização. A mesmice no campo da economia e da política, com o neoliberalismo, vai compondo uma globalização enviesada pela lógica do mercado, calcada na competição e no consumo. Talvez a pretensão de um único idioma a suplantar todos os demais, seja a manifestação mais evidente de um projeto de dominação global – em uma alusão distorcida da narrativa bíblica da Torre de Babel.

batuqueA cinzenta ideologia em torno de uma única cultura, a englobar todas as demais, está longe de se configurar como o ideário utópico de uma comunhão universal. O processo de globalização, em sua violência homogeneizante, promove a desconstrução de identidades culturais. A dimensão da alteridade, em um movimento de profícuo e autêntico diálogo, é esvaziada diante da dinâmica de redução da cultura a um mero instrumento a serviço do capital. Nesse cenário, expressões genuínas de arte e cultura devem ser preservadas, fortalecidas, em uma clara perspectiva de oposição e resistência à lógica da espetacularização.

A tradição do Batuque de Umbigada descortina-se como uma autêntica manifestação cultural, com sua cadência rítmica caracterizada pelo som do tambú – instrumento musical liturgicamente moldado em fogueira, a partir de um toco oco de árvore com significado místico –, com a sua dança embalada por um vai e vem com conotação espiritual – o ventre feminino encontra o masculino, na essencialidade da pessoa, compondo a umbigada – e com a contundência de suas letras, poemas, modas a entoarem densas representações existenciais. Em uma roda de Batuque de Umbigada expressivos elementos simbólicos são projetados, em uma polissemia de metáforas vivas. Com profundidade rara, cada moda compõe-se como um tecer de memórias, de percepções sobre a existência, de narrativas do cotidiano, de práticas religiosas sincréticas, de afirmação de identidade, de recontar vicissitudes históricas, de veementes gritos de denúncia, resistência e liberdade.

AniceÉ interessante e sugestivo se ater aos conteúdos transmitidos em cada moda. Há uma diversidade de temas, abordando questões sensíveis do tecido social. Na epígrafe em relevo acima se torna exemplar a denúncia, em forma de crônica e desabafo, contra uma determinada situação de humilhação. Nesse ponto, o Batuque de Umbigada descortina-se como espaço de resistência e afirmação identitária. A resposta a toda humilhação – talvez realizada por práticas históricas de preconceito, de subjugação por meio da pobreza e da injustiça social – é concedida diretamente, em tom escatológico, mediante a força dignificante do Batuque.Na ritualidade do Batuque, a humilhação imposta é, derradeiramente, vencida, superada.

Por meio de suas modas, o Batuque de Umbigada, em um diálogo fecundo e não ausente de ironia, faz ecoar, retumbar a voz de tantas tradições silenciadas. Trajetórias e vivências passam a ser entoadas, em uma hermenêutica existencial à luz do vai e vem de cada dança, no encontro simbólico, mas também real entre umbigos. Se o umbigo é a representação do centro do mundo, da essencialidade e fecundidade da vida – como ensina tantas culturas, inclusive a Banto –, o movimento do Batuque de Umbigada não deixa de ser uma resposta figurada, icônica a todas as forças que negam a vida como arte, como devir, como possibilidade aberta.

Há uma liturgia profunda, a envolver todas as dimensões do Batuque de Umbigada. O sentido de tal liturgia não pode ser explicitado em parâmetros de uma racionalidade cartesiana, positivista, globalizante. A linguagem do Batuque de Umbigada é permeada por metáforas, a contemplarem aspectos essenciais do humano e de seu fazer cultural. Acessar tais aspectos pode significar mergulhar em uma imprescindível experiência de humanização, de encontro consigo mesmo, com o outro, com o mundo.

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Adelino de Oliveira é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (campus Capivari).

(FOTO DE ABERTURA: Andrea de Valentim)

3 thoughts on “Batuque de Umbigada: tradição e identidade

  1. Caro Adelino.
    Texto que me ensinou e emocionou.
    Sua visão diferenciada sobre a vida com sua beleza e sofrimento, sua luta e necessidade de superação, o assombro que tantas vezes nos causa, é sempre uma referência importante para que eu entenda o intrincado caminho que temos que trilhar.
    A nação africana, sua história, seu sofrimento, sua luta. Sua cultura, “suas tradições silenciadas”, sua beleza.
    Sabedoria.
    Obrigada por mais esse presente, Adelino.
    Abraço com afeto.

  2. Querida Zilma Bandel,

    É sempre um bom privilégio poder dialogar com você. Seus comentários são verdadeiras contribuições ao texto já escrito. Sua perspectiva de olhar configura-se como um valioso estímulo para prosseguirmos na dinâmica da escrita.

    Com amizade,

  3. O texto é mágico e mexe com nosso imaginário. Em determinado momento, consigo resgatar a presença do mestre João Chiarini ensinando-me sobre o poder e o valor do Folclore e sobre a magia dessa dança ritual. Consigo lembrar-me da grande obra de Josué Montello, ” Tambores de São Luiz” , como no texto dele dá para sentir o batuque.Parabéns, mestre Adelino.

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