Batman encarapitado no alto do mais alto prédio
em Gotham City, na noite escura e ventosa,
sua silhueta de homem-morcego recortada
contra a lua cheia nascente,
fuma um Gauloise sem filtro e pensa
na merda de vida que leva, essa que inventou para si,
justiceiro mascarado, a passar uma existência de ficção,
onde toda a realidade é deslocada para caber
na sua própria loucura, essa vida dupla
de bilionário e super-herói, a lutar contra bandidos fantasiados,
nunca um problema real, nunca algo que realmente importe,
nunca algo que mereça sequer uma menção
nos livros de história, nem mesmo de psicologia,
seu tipo banal de esquizofrênico não merece uma linha,
uma nota de rodapé, uma citação, uma chamadinha qualquer,
“o misterioso paladino, que nunca foi visto
junto com o milionário Bruce Waine”,
ele e sua proposta de vida, que bosta!,
uma promessa feita ao pai morto, à mãe assassinada,
e agora as vinte e quatro horas do dia passadas
na tensão de escutar o noticiário,
de se ocupar de crimes nonsense perpetrados
por celerados imaginários
– onde eu estava com a cabeça?, ah, o excesso de dinheiro herdado
nos joga num redemoinho de inconsequências –
e Batman olha de seu ninho solitário a cidade abaixo,
bastaria um vacilo, um instante, um passo no vazio
e tudo aquilo se acabaria,
ele esborrachado na calçada,
na poça de sangue que haveria de lhe tingir a capa,
e alguém que lhe arrancaria a máscara,
a dizer, “o rosto foi horrivelmente desfigurado”,
e Batman seguiria insepulto, sua identidade preservada,
e todos estranhariam o sumiço do milionário,
mas Alfred, o mordomo, informaria ter Bruce viajado,
e enterraria no jardim o indigente, “um ato de caridade”,
no mesmo monturo onde têm seus sepulcros
a mulher invisível, o homem de borracha, o incrível Hulk,
Mandrake, o Fantasma-que-anda, e Zorro,
o cavaleiro mascarado.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.