Desde o final do século XX o observador atento “percebe no ar” o início e o avanço de uma mudança profunda nas relações internacionais, para não dizer no próprio modo de vida, em todo o mundo. Desde então, agora se pode dizer com certeza, a balança do poder está saindo do ponto de equilíbrio em que se encontrava, sob um regime de forças que se convencionou chamar de Guerra Fria, com sua bipolaridade U.S.A. x U.R.S.S (hoje Rússia).
Atualmente está muito claro que a geopolítica se movimenta ao sabor de uma correlação de forças multipolar, na qual chama muito a atenção o peso econômico-comercial e estratégico da China, que há anos “vem comendo pelas bordas”, enquanto Estados Unidos e Rússia amarguram uma relativa (senão absoluta) estagnação, embora a potência capitalista de primeira ordem esteja ainda muito longe de perder a coroa.
Episódios recentes como a guerra da Rússia contra a Ucrânia por fronteiras e também o massacre de Israel aos palestinos por território, assim como a invisível situação de calamidade do Iêmem (de fato vítima de uma guerra por procuração entre potências que se aproveita das divisões internas da população local em torno de fundamentalismos), entre outras escaramuças letais mundo afora, são indicadores claros de uma movimentação de forças visando a garantia de predomínio e supremacia na “nova ordem mundial”. O aparecimento de um sujeito aparentemente desvairado, como Trump, à frente da maior economia do mundo (muito distante, em PIB, da segunda) e comandante da maior potência militar da História, que fala e age chutando todos os paus que sustentam a barraca, é um “sinal dos tempos”: de olho nos espetaculares avanços da economia e das relações comerciais e diplomáticas dos chineses, de que se ressentem os americanos, o presidente americano inicia um giro de 360 graus na diplomacia e nas relações comerciais da Casa Branca; deixa a Europa “na mão”, ameaça vizinhos, inicia uma guerra tarifária que põe na lona tudo que até agora tem sido feito em termos de livre comércio e globalização econômica. A ver, com o tempo, se os Estados Unidos vão, de fato, abandonar sua intransigente (pertencente ao seu DNA nacional) defesa da democracia e do livre comércio e de relações internacionais de cooperação frontalmente contrárias a modelos econômicos dirigistas (como o tão bem-sucedido adotado pela China).
Diante do noticiário que não para de oferecer evidências de que o mundo está se encaminhando para um caos que em muito se assemelha ao das vésperas das duas Grandes Guerras Mundiais (inclusive com um componente ideológico que aponta na direção da violenta extrema-direita), atitudes ingênuas aparecem nas mídias, nas redes sociais, nos debates e mesmo nas conversas quotidianas criticando o belicismo crescente e clamando pela paz. Nobres posicionamentos! Que de nada serviram, há que se lembrar, naquele terrível momento entre a primeira e a segunda Guerras Mundiais (1919-1938), quando todo o mundo, todas as pessoas, todas as instituições, de modo algum queria viver, de novo, os horrores do conflito de 1914-1918. Mas viu e sentiu piores…
Em Ascenção e queda das grandes potências, Paul Kennedy demonstra, com dados e análises bastante críveis, que existe quase uma lei, senão uma lei, mesmo, de fundo histórico-sociológico-político, estabelecendo que a balança de poder entre grandes potências é, e sempre será, instável: não existe possibilidade de predominância permanente e inquestionável, eterna, imutável, de uma única nação ou coalisão de países/povos nas relações internacionais. Assim foi ao longo dos cinco séculos entre 1500 e 2000 e, ao que sabemos, também antes disso, sendo a queda do Império Romano uma lembrança absolutamente marcante. Kennedy argumenta, e procura evidenciar com dados e fatos, que quando as crescentemente custosas obrigações militares, necessárias à garantia dos interesses das potências, se espraiam pelo mundo numa intrincada teia de compromissos externos, e começam a exceder o potencial econômico (produtivo, comercial, financeiro) dessas potências, aí se inicia o seu inevitável declínio. Seu lugar será ocupado pelas nações cuja relação entre o potencial econômico e o esforço militar seja favorável, a economia sustentando o gasto militar com tranquilidade. Assim foi no caso de todas as potências, grandes e médias, nos últimos quinhentos anos: Habsburgos, Espanha, França, Grã-Bretanha, Prússia, Países Baixos, antes das Grandes Guerras e, depois, com Estados Unidos, União Soviética, Japão, China e potências médias europeias.
Depois de analisar com riqueza impressionante de detalhes todo o processo histórico que produziu as mudanças de equilíbrio de 1500 até a 1945, Kennedy apresenta o mapa do atual, que envolve o quinteto Estados Unidos, União Soviética (que até a data da publicação do livro ainda não havia se desintegrado), Japão, China e Comunidade Econômica Europeia (que ainda não havia se transformado na União Europeia nem tinha o euro como moeda única).Em seguida analisa os pontos fortes e fracos de cada um, como indícios de suas possiblidades. No capítulo final do livro há um ousado exercício prospectivo que, em grande medida acerta: às vésperas do novo milênio, Estados Unidos em declínio, União Soviética com muita dificuldade para se manter entre os grandes, Japão em admirável processo de fortalecimento econômico, China avançando também espantosamente, grupo de países europeus (à frente Alemanha) dependendo de capacidades de articulação em bloco para participarem do concerto dos grandes.
A leitura desta obra de fôlego, escrita no final dos anos 1980, é muito esclarecedora na busca de compreensão das questões geopolíticas contemporâneas, ajudando a entender inclusive fatos de que não pôde tratar, porque ainda não tinham ocorrido: o fim da U.R.S.S., a queda do muro de Berlim, as crises econômicas globais desde o fim dos anos 1990, o 11 de Setembro de 2001 – fatos estes que não deixam, por sua vez, de se encaixar na lógica estruturada por Kennedy para defender suas teses.
O que estamos vivendo agora, é plausível acreditar, à luz de Ascensão e queda das grandes potências, é o declínio do Império Americano, cedendo lugar à predominância do Império Chinês que, segundo o próprio Kennedy, perdeu a oportunidade de sê-lo antes de 1500, quando a dinastia Ming não a aproveitou (na sua atitude centralizadora da economia e do poder), o que os europeus fizeram (lançando mão do seu bem-sucedido laissez-faire econômico e político).
Como já dito, este longo livro, carregado de dados e relatos de fatos cruciais, é altamente esclarecedor (como costuma ser toda literatura histórica), mas, por outro lado, sua leitura pesa, até dói. São mais de 600 páginas de lutas sangrentas e impiedosas, de guerras que terminam para dar lugar à próxima, em busca de riqueza e poder – mais do que isso: de perseguição ininterrupta da máxima riqueza e do poder do inquestionavelmente mais forte. Tudo isso sem uma única frase de lamento pelo sangue derramado, pelas cidades destruídas, pelos sonhos interrompidos, como se ao humano não restasse senão tentar sobreviver no meio dos tiroteios e bombardeios cada vez mais potentes, enquanto mantém a esperança de que o arsenal atômico não seja acionado.
Sorte a minha, ter lido, no dia seguinte à conclusão da leitura de Ascensão e queda das grandes potências, esta Sutil Inútil Poesia, de Alê Bragion, para retirar o espírito da caverna escura em que consiste a Bruta Pragmática Geopolítica:
“Palavra que é verdade! Juro! A palavra ali. Fria. Sobre a pedra. Feito muro. Esquecida da poesia. Carrego um pacote delas comigo. Às vezes, as chacoalho feito um dadaísta e as jogo sobre o pano. Outras, as escolho pelo lustro – como fosse eu um refugo parnasiano. Adoro mesmo a coleção das que não uso. Quer saber algumas? Beneplácito é uma delas. Incúria é outra. Quer mais? Emula. Petriz. Carraspana. Graveza. Amaríssimo. Macérrimo. Coita. Suso.
Palavra que não vi! Juro! A realidade ali – e eu a procurar um poético plano. A vida sobre a pedra e eu a desenhar poesia. O muro a emparedar o dia e eu vaguear o verbo em som piano. Quando dei por mim, vi pelos jornais uma adolescente morta, assassinada, jogada qual fosse lixo à beira da estrada. Achei palavra para tanto? Nada. Deitei sobre o pano dos sentidos o verbo antes ao pé do ouvido e me deparei comigo, sem vocábulo-amigo a nomear uma tristeza feita de incredulidade e espanto. Achei palavra? Para que eu faria um canto? A palavra em si é um fim? De que servem as palavras diante de absurdos (e são tantos) assim?
Às vezes, quase sempre, oculto que me revolta a poesia. Porque de tanto querer as palavras, de tanto querer me irmanar a elas e acumulá-las e guardá-las e cantá-las, são elas o que não acho quando mais preciso. Então, emulo – amaríssimo. Então, descreio e escrevo sonhos de versos sem beneplácitos. Graveza. Por que dizer mais? À beira do abismo do mundo, cúmulo do mal, a poesia é o túmulo do lirismo irreal. Agora entendo o poeta João Cabral quando escreveu: “Poesia, te escrevia: flor! Conhecendo que é fezes. Fezes como qualquer, gerando cogumelos (raros, frágeis cogumelos) no úmido calor de nossa boca” – oca, acrescentaria eu.
Inútil a poesia – afinal – diante do carro que fura, veloz, o sinal. Sutil inútil poesia dentro dos bolsos cheios do capital (que mata e consome e explora e mata). O que pode a poesia sobre o rastro da floresta, derrubada, a virar pasto? O que é a poesia em meio à guerra senão palavra-bala-perdida que erra? Poesia inútil ao meio dia sob o sol que serpenteia em fogo sobre a vida – também quase sempre inútil – de mim alheia. Alheia porque sigo aqui, arquivando vocábulos como fossem eles – e não tão somente eu – bichos nos estábulos. “Palavras impossíveis de poema. Te escrevo, por isso, fezes, palavra leve, contando com sua breve. Te escrevo cuspe, cuspe, não mais” – me irmano a ti, João Cabral, poeta dos meus ais.
Palavra que é verdade! Juro! Palavra que eu releria esta semana o mundo – rima rasa e fria – mas não reli. Porque a realidade me foi (e é) mais. Porque a antiode cabralina se fez – também esta semana – cotidiana crônica quase insana. Olhei tudo de olhos sem poesia, poesia “extinta de flor, flor, não de todo flor, mas flor, bolha aberta no maduro”. Sutil poesia inútil. Não mais que palavra pichada num muro.”
Entre o general e o poeta, ainda há de haver um ser humano sábio, leve e macio. Quero crer.
Valdemir Pires é economista e escritor.
(Referência: KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989, 675 p.)