As Luzes da Paixão de Cristo na Perspectiva do Guarantã

As Luzes da Paixão de Cristo na Perspectiva do Guarantã

Guarantâ 2015

Em uma bela trajetória de 25 anos, o grupo teatral Guarantã repropõe – sempre sob a inspiração direta da tradição dos Evangelhos – uma nova leitura sobre os eventos que envolvem os últimos passos da vida pública de Jesus. Com acurada pesquisa histórica, elementos centrais do ministério de Jesus e dimensões essenciais de seu movimento ganham vida na encenação da Paixão de Cristo de Piracicaba.

Em um sensível e criterioso trabalho de hermenêutica – vislumbrando tanto alcançar o sentido mais genuíno da revelação de Cristo quanto transpor a essência dessa mensagem para o contemporâneo – o grupo Guarantã, por meio do roteiro, da cenografia, da sonoplastia, da iluminação, das interpretações, procura apresentar e enfatizar aspectos fundamentais do caminho e verdade de Jesus de Nazaré.

Nesse ano jubilar, a direção do espetáculo esteve sob os cuidados de Raul Rozados, jovem diretor que guarda uma singular história pessoal com a Paixão de Cristo e com o grupo Guarantã. A direção de Raul Rozados simboliza um belo e fecundo ciclo de amor e fidelidade à arte cênica e à Paixão de Cristo em particular. Com roteiro e direção de Rozados, o espetáculo Paixão de Cristo conquista novas luzes e cores, a focalizarem traços sugestivos, profundos de Jesus e de seu movimento.

cartazO enredo articula-se de maneira a enfatizar a personalidade de um Jesus de voz terna e serena, tomado por evidente sensibilidade, porém de atitudes firmes e contundentes. Dentre tantas cenas expressivas, alcança especial atenção a representação da ceia de Jesus com seus discípulos, seguida da gestualidade exemplar do lava-pés – a mesa posta, com Jesus e seus discípulos em volta, todos sentados no chão. A cena evoca simplicidade, mas também intensa intimidade. Jesus coloca-se na condição de servo – apresentando a linha mestra de seu projeto –, em situação de igualdade, fraternidade com seus discípulos. A força e beleza da cena desdobram-se, talvez, em sua busca por fidelidade ao ambiente histórico da Santa Ceia.

O protagonismo e liderança das mulheres compõem outro recorte que se destaca na percepção cênica de Rozados. Novamente, desejando maior fidelidade aos eventos históricos, as discípulas de Jesus – a exemplo dos apóstolos – são também nomeadas e aparecem plenamente ativas em seu movimento. Neste ponto, o roteiro do espetáculo – propondo uma livre interpretação dos fatos – elabora uma mescla entre os relatos dos Evangelhos – ressaltando principalmente a perspectiva joanina –, textos apócrifos e algumas concepções teológicas contemporâneas.

A construção das tentações sofridas no deserto, no sugestivo e inteligente simbolismo de dois anjos decaídos, com as asas pela metade, não deixa de enfatizar a realidade de um mundo em pecado, a retirar do humano sua condição de integridade. O diabólico é aquilo que divide o humano, apartando-o das possibilidades de encontro com o outro e com o próprio Deus. O conteúdo social das tentações descortina-se como uma retumbante denúncia que se levanta contra uma sociedade que se apartou do bem, da verdade.

A representação das crianças, cheias de vida e dignidade, sendo acolhidas por Jesus aponta para as possibilidades de uma existência autêntica, sincera, aberta e criativa, sem hipocrisias nem dissimulações. O afeto e cuidado que Jesus oferece para as crianças também desmontam uma estrutura social hierarquizada e estagnada, totalmente fechada para o devir. Interessante este ponto, considerando-se o delicado momento histórico em que se cogita lançar crianças e jovens às mais severas punições.

Ao longo de toda a encenação da Paixão desfilam temáticas perenes do legado cristão, inspiradoras para todos os povos: a perspectiva de um perdão sem limites; da vida como serviço desinteressado; da partilha como caminho para superação de situações de carência; da ternura e acolhida ao próximo, como tônica das relações; da transcendência como referência para todas as escolhas; do amor que se faz dom e entrega, elementos, dádivas que suplantam tudo que limita e impede a existência de ser bem mais.

Toda a cadência do enredo da Paixão de Cristo procura envolver o expectador na mais profunda, bela e inspirada história de amor. As passagens escolhidas, a riqueza dos gestos simbólicos, a iluminação direcionada, as intervenções do locutor apontam para uma compreensão teologicamente refinada, elevada de ressurreição. As imagens que reconstroem a experiência da ressurreição são marcadas pela singeleza – não pelo caráter impactante – e pelo contundente convite que deve ecoar irresistivelmente nos corações. A ressurreição como um poderoso processo em curso, a tornar atuais os ensinamentos e gestos de Jesus. Na hermenêutica de Rozados, onde há solidariedade, acolhimento, justiça, fraternidade, doação, perdão, amor, podemos conhecer, plenamente, Jesus ressuscitado.

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Adelino Francisco de Oliveira é doutor em Filosofia pela Universidade de Braga/Portugal e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.       

3 thoughts on “As Luzes da Paixão de Cristo na Perspectiva do Guarantã

  1. Caro professor Adelino.

    Seus textos sempre me ensinam muito. Em particular, esse sobre a Paixão do Guarantã e “A Pascoa cristã: reafirmação de princípios fundamentais”, com olhar de profundo conhecimento teológico e filosófico, enriqueceram demais minhas reflexões sobre o tempo da Páscoa.

    Conheço o Raul desde menino. Sua família – agora somente seus pais – mora em frente de minha casa. Nossa relação é de respeito, amizade, cordialidade e carinho.
    As primeiras reuniões e ensaios para a Paixão aconteciam no abrigo de sua casa. Esperava ansiosa elas acontecerem. Acompanhei desde o início esse trabalho que agora tem uma importância que já é referência dentro de nosso Estado.
    O Raul professor, filósofo, ator, fotógrafo premiado, que desenvolve um trabalho de extrema importância para a cultura e memória cultural de Piracicaba, é um ser humano de humildade, gentileza e sabedoria que encantam.
    Senti grande alegria ao saber que ele estaria à frente da direção da Paixão este ano. Não pude assistir desta vez.
    Por causa disso tudo, foi grande minha satisfação ao ler seu texto, sempre com competência, profundidade, conhecimento e análise crítica abrangente e minuciosa. Texto que é acessível para uma leiga como eu e extremamente favorável ao difícil trabalho do Raul, pelo porte e número de participantes e, principalmente, por se tratar de tema delicado e complexo.

    Obrigada, professor, sempre, por tudo que me ensina.
    Uma Páscoa de muita luz!
    Abraço com afeto.

    1. Prezada Zilma,

      Lindos tempos esses dos encontros do Guarantã na garagem de casa. Como sempre digo, quem vê a “Paixão de Cristo” agora, não imagina a montagem acontecendo sobre três carros alegóricos, no gramado da ESALQ, nos idos dos anos noventa.

      Muito obrigado por tudo!

      Raul

  2. Querida Zilma,

    Agradeço por seu gentil comentário. É uma pena que você não pode ir prestigiar o espetáculo esse ano. O Raul realizou um trabalho maravilhoso.
    Na direção do que conversávamos outro dia, o protagonismo leigo tem assumido a linha de frente, a vanguarda da difusão e propagação da mensagem cristã.
    O espetáculo Paixão de Cristo desperta emoção, mas também propõe uma contundente reflexão sobre a dinâmica das relações no contemporâneo.

    Bom, precisamos prolongar esses nossos diálogos, que são tão sugestivos e interessantes.

    Com cordial amizade,

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