A “Torá”, “A Lei de Moisés”, em edição bilíngue comentada da Editora Sêfer, passou a ocupar parte do meu tempo, juntou-se às de outras religiões que também adotam a Torá em seu cânone. E não se trata de comparação – deixo claro – que para mim cada uma tem seus méritos. Inicialmente, fui em busca da Torá da Editora Sêfer pelo aspecto literário, pelo interesse na construção das frases (estranhas ao português) pela poesia na repetição das palavras, entre outros, em um Livro para ser ouvido. E eis que sou seduzido também pelos comentários – sejam dos editores (E), sejam dos sábios e eruditos que ao seu estudo dedicaram-se.
Dois exemplos, já no princípio (sem trocadilho),no Livro do Gênesis. Em 2,4: “Estas são as origens dos céus e da terra ao serem criados; no dia de fazer, o Eterno Deus, terra e céu”. E o comentário ao versículo: “4. Eterno Deus – Aqui aparece pela primeira vez o nome Ado-nai (Eterno) (…). O uso de dois nomes divinos juntos – Ado-nai Elohim – vem nos ensinar sobre o equilíbrio entre justiça e misericórdia. De acordo com os sábios do Talmud, o primeiro invoca ‘Midat Harachamim’, o atributo de misericórdia de Deus, enquanto o segundo ‘Midat Hadin’, o atributo de justiça de Deus. Ensina-nos o ‘Midrash’: “Assim disse o Santíssimo, bendito seja: Se Eu criar o mundo com o atributo de misericórdia, haverá muitos pecadores, porém, se o criar com o atributo de justiça, como o mundo poderá subsistir? Por isso, criarei o mundo com ambos e em conjunto, e tomara que ele perdure!” (E).
Fui fisgado – relacionar os nomes divinos à justiça e misericórdia, o mundo criado com ambos e em conjunto – os dois atributos em equilíbrio! Ah, Reverenda Mariann Edgar Budde, me veio a senhora, seu sermão na Catedral Nacional de Washington, frente ao presidente eleito, repetindo, pedindo misericórdia para com os transgêneros, os migrantes. Me vieram os ataques que a senhora sofreu por pedir misericórdia! E fisgado: “e tomara que ele perdure!”, não lembro de ter esbarrado com tão intensa expressão do livre arbítrio.
Segundo exemplo, Gênesis 18,20: “E disse o Eterno: ‘O clamor de Sodoma e Gomorra aumentou, e seu pecado se agravou muito’”. Comentários: “20. O clamor – das pessoas que sofriam as atrocidades cometidas pelos habitantes de Sodoma e Gomorra, implorando a intervenção de Deus. “’Eis que essa foi a maldade de Sodoma… fartura de pão e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas, e não estendeu a mão ao aflito e ao necessitado’” (Ezequiel 16:49). “20. seu pecado – O ‘Midrash’ nos explica porque Sodoma era um símbolo de maldade: “Anunciaram em Sodoma: Todo aquele que alimentar o pobre e faminto com um pedaço de pão, será queimado no fogo.”(…). Ah, Padre Júlio Lancellotti, me veio o senhor cuidando, ou melhor, convivendo (como faz questão de frisar) com os moradores de rua, distribuindo o pão. Me vieram os ataques que sofre pela mão sempre estendida ao aflito e ao necessitado.
Um dia ouvi a regra de ouro (Mateus 7,12; Lucas 6,31) na forma de uma “historieta” que contava que um gentio abordou e insistiu como sábio Hilel que iria converter-se ao judaísmo caso pudesse aprender toda a Torá enquanto estivesse apoiado em uma perna só. Hilel respondeu: “Não faças a outrem o que não queres que te façam. Essa é toda a Torá; o resto é comentário. Agora vai e estuda.”
A ironia finíssima grudou – pretensiosamente comecei a estudar.
Sergio Oliveira Moraes é físico e professor aposentado da ESALQ-USP.