Milhões de homens livres, nascidos como feras ou como anjos, nas fúlgidas areias da África, roubados, escravizados, azorragados, mutilados, arrastados neste país clássico da sagrada liberdade, assassinados impunemente, sem direitos, sem família, sem pátria, sem religião, vendidos como bestas, espoliados em seu trabalho, transformados em máquinas, condenados à luta de todas as horas e de todos os dias, de todos os momentos, em proveito de especuladores cínicos, de ladrões impudicos, de salteadores sem nome.
(Luiz Gama, A Província de São Paulo, 18 de dezembro de 1880).
O tema da África deve despertar cada vez mais interesse e atenção, não apenas para um seleto público de especialistas, mas para toda a humanidade. Conhecer a África, seus povos, suas representações culturais, suas tradições religiosas, seu legado civilizacional configura-se como um caminho para se aproximar da diversidade pela qual o humano se constrói e se define. Mais do que reconhecer a África como o berço da humanidade é fundamental colocar em relevo suas contribuições para o presente da própria história humana.
As impactantes, iluminadas cores de África, com seus múltiplos povos e manifestações, perfazem e acalentam uma longa trajetória humana, forjada por profundas experiências de comunhão, mas também marcada por duras, perversas situações de opressão e violência. Definitivamente não é possível compreender a mãe África sem considerar a complexidade de seus personagens e de sua história.
Em retrospectiva, voltando o olhar para um período histórico relativamente recente a devastar a África, é possível se deparar com séculos de um movimento cruel de tráfico humano e escravidão, com as disputas mercantis e o famigerado processo de expansão neocolonialista – impetrado pelo capitalismo monopolista –, com as lutas de independência e instalação de ditaduras e governos totalitários – como desdobramento da guerra fria – e com a conflagração das guerras civis, a promoverem genocídios e etnocídios. Mas é preciso que se denuncie: por trás de todas as mazelas, vicissitudes e atrocidades sofridas por mãe África no contexto moderno, desvela-se a ganância hipócrita e belicosa das potências europeias.
O preconceito arraigado, o racismo incrustado em tantas débeis consciências, não deixa também de ser reflexo de um longo e meticuloso processo de construção ideológica e alienação. A bestial violência desencadeada contra os filhos da África configura-se como negação, rejeição da própria humanidade. Em um viés positivista, toda uma legítima expressão cultural foi reduzida ao conceito de barbárie e uma genuína tradição religiosa passou a ser compreendida como mera superstição. Aos olhos do Ocidente, toda a África descortinava-se como terra sonâmbula, terra de ninguém, pronta a ser reconduzida ao destino da civilização.
Sob este mote, orquestram-se ainda tantos projetos de cunho educativo e mesmo missionário, ávidos a civilizar, redimir e levar salvação a um povo imerso em desumanidade. Com novas linguagens e roupagens a velha e cansativa dinâmica de dominação tem buscado se perpetuar. Obviamente que há, no contemporâneo, também ações legítimas e cheias de méritos, destacando-se projetos relevantes, comprometidos tão somente com a dignificação da vida humana.
Recuperar a história perdida da África não significa desconsiderar seus contrastes e suas muitas contradições. O olhar crítico para a história possibilita contemplar este continente, de maneira a identificar suas belezas e contribuições, mas também ponderar sobre seus limites e fragilidades. Suplantando todo peso ideológico, consolidado em séculos de dominação, é preciso perceber o valor de mitos e histórias sagradas, aproximar-se da singularidade na diversidade étnica e cultural, reconhecer a dignidade que se perpetua sob o auspício de outra forma de organização econômica e concepção de vida.
Do movimento de recuperar a memória de mãe África brota a perspectiva de encontro e reconciliação com nossa própria identidade humana. Oxalá celebrar o dia da consciência negra se constitua como um passo em direção a uma nova consciência humana, calcada no princípio da alteridade e na comunhão universal entre os povos.
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Adelino Francisco de Oliveira é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFSP) de Capivari.
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pudemos trocar ideias
sou angolano a residir em portugal
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