Fazer crítica é pisar em ovos. Aliás, a boa crítica – em especial a literária – anda, para além da superfície dos ovos, praticamente desaparecida. A patrulha ideológica que divide o mundo (ou ao menos o Brasil) em esquerda e direita empurrou a crítica para o sumidouro do pensamento. Pior. Em tempos de linchamento e cancelamento virtuais – e, em alguns casos, até não-virtuais – avaliar se algo é bom ou ruim, se é bem produzido ou mal produzido tornou-se quase risco de morte. Como diria uma charge que viralizou há pouco tempo nas redes sociais, dar opinião é praticar esporte radical.
É fato também que, por outro lado, a boçalidade que tomou conta da nação durante os decadentes e tenebrosos quatro anos de desgoverno bolsonazista relegou a opinião à excrecência da exposição tácita da falência mental e cognitiva de parte (imensa) do país. Quer dizer, na boca de esgoto do bolsonazismo a opinião virou cusparada sem uso de neurônios – se opinava ao livre e ao bel-prazer de se mostrar a mais completa falta de noção sobre aquilo que se estava opinando, fosse o tema ou a pauta que fosse: arte, educação, ciência ou, mesmo (claro), política. Ou seja, se a crítica e a capacidade de se refletir e se opinar com um mínimo de conhecimento de causa sobre aquilo que se está opinando já era uma atividade rara, o bolsonazismo fez da opinião e da reflexão a vitrine da idiotia e da imbecilidade.
De outro lado, a esquerda – de maneira geral – baixou os protocolos sobre o livre-pensar e passou a determinar (como sempre) o que é ou não é correto, o que é ou não é moral, o que é ou não é lícito. E como Narciso acha feio o que não é espelho, opiniões e reflexões (e mesmo comportamentos) fora da cartilha careta do moralismo de esquerda também passaram a ser interpretadas como desvio de conduta ou deserção ideológica-identitária. No fim das contas, vivemos tempos insossos em que criticar deixou de ser avaliar a partir de teorias, de reflexões conceituais, de domínio da técnica, de pontuações comparativas, dialógicas e (claro) livres. De maneira geral, parece que fazer crítica, hoje – mais do que pisar em ovos – é optar por escarrar com a direita ou tolerar o uso da camisa de força da esquerda (pseudo)sacrossanta. Crítica mesmo, em essência, babau!
Ilustrando da melhor maneira possível a crise da crítica que assola o país (claro, há aqui um trocadilho com o famoso FEBEAPA – o Festival de Besteiras que Assola o País – do saudoso Stanislaw Ponte Preta), eis que a Folha de São Paulo desse sábado, dia 7 de dezembro, traz em seu caderno de cultura uma entrevista com o maestro Júlio Medalha – que no alto dos seus 86 anos segue firme na música e no uso de ironias, de sarcasmos e até de alguma (por que não reconhecer) maledicência vocabular. Num misto de direita e esquerda numa frase só, o maestro afirmou em sua entrevista que “qualquer idiota consegue fazer funk, pop e rap”. Bastou. À esquerda e à direita a afirmação ganhou as redes e o maestro ganhou generosos elogios de ambos os lados (há ironia e eufemismo neste trecho, registre-se).
Ao que pese o vocabulário do maestro (mais provocativo e menos ofensivo do que possa parecer), é imperativo reservar-se a ele (e a todos e todas nós) o legítimo direito de dizer que isso ou aquilo não é bom, que algo não funciona e por quê. Ora. Talvez não fosse difícil ao maestro, em outros termos, gastar mais do que uma meia dúzia de argumentos razoavelmente coerentes para defender sua tese – lembrando que o maestro Júlio Medalha não tem lá nada de careta, tendo inclusive participação fundamental no surgimento da Tropicália. Sem adentrar-se aqui, todavia, no debate sobre o funk, o rap ou o pop, parece evidente que a crítica nessa caso, mais uma vez, perdeu seu espaço para o ideológico da questão. Em outros termos, qual é o problema de se avaliar bem ou mal uma determinada produção? É preciso gostar de funk para ser de esquerda? É preciso detestar o funk para ser de direita?
Ao fim e ao cabo, o que é preciso mesmo é recuperar-se o direito de se defender (com argumentos, com coerência e com qualidade conceitual) uma tese e se fazer crítica – mesmo que ela contrarie as ideologias das massas. É preciso voltar a pensar e criticar com firmeza e conhecimento – mesmo que seja pelo simples ato de gerar debate e reflexão coletiva. À esquerda ou à direita, a pasteurização do pensamento e da opinião nos transformou em sujeitos assujeitados. Ou vencemos isso ou sumiremos, como nossas críticas e opiniões, pelo ralo imenso da ignorância que engole a nossa contemporaneidade.