Abandono é um Projeto Político

Abandono é um Projeto Político

A afirmação “abandono é projeto político” é uma perspectiva crítica e analítica que tem sido utilizada em diversos campos para descrever situações em que a negligência, a omissão ou a retirada intencional de recursos e atenção por parte do Estado ou de outras instituições configuram uma ação estratégica com objetivos políticos, sociais ou econômicos.

Em vez de ser visto como uma falha ou um acidente, o abandono é interpretado como uma política deliberada, que pode ter como resultado deixar certas populações ou territórios à margem do desenvolvimento e dos direitos básicos, como saúde, educação, saneamento e segurança. Pode aprofundar as disparidades entre grupos sociais, mantendo ou criando hierarquias e vulnerabilidades.

Esse projeto fragiliza comunidades (como as periféricas, em situação de rua ou minorias) por meio do abandono e facilita a repressão. O abandono pode criar um estado de crise ou “terra de ninguém”, que posteriormente serve como justificativa para intervenções violentas ou políticas de “higienização social”.

A ausência de investimentos em saneamento básico, transporte público e moradia em periferias ou áreas rurais, por exemplo, não seria apenas falta de planejamento, mas uma decisão que mantém essas áreas em condição de subalternidade.

O desmonte ou a insuficiência intencional de programas de saúde mental, combate à evasão escolar (abandono escolar) ou assistência social é uma opção. O resultado é a precarização dos serviços e o sofrimento dessas populações, muitas vezes culpabilizadas por sua própria condição.

O abandono afetivo (em contexto social/estatal)  – embora o termo “abandono afetivo” seja legalmente aplicado à relação familiar – no contexto político refere-se à falta de cuidado e reconhecimento do Estado para com seus cidadãos mais vulneráveis.

Em essência, a frase sugere que o que parece ser inação é, na verdade, uma ação altamente eficaz para atingir certos objetivos de poder, de classe ou de manutenção do status quo. É um convite à reflexão para ir além da ideia de incompetência e analisar a intencionalidade por trás da negligência estatal.

O abandono escolar, por exemplo, raramente é apenas uma “escolha” individual do aluno. Ele é o resultado de um conjunto de omissões e carências estruturais que o Estado não endereça, tais como falta de logística para que o aluno da periferia ou da zona rural chegue à escola, escolas sem laboratórios, bibliotecas ou quadras, tornando o ambiente desinteressante ou ineficaz para o aprendizado.

Outro fator importante é a necessidade de o jovem entrar precocemente no mercado de trabalho (subempregos) para complementar a renda familiar, tornando-se uma prioridade maior do que os estudos.

Se a educação é o principal motor de mobilidade social e de formação de pensamento crítico, o abandono escolar em massa cumpre um papel político. Garante a perpetuação de uma força de trabalho pouco qualificada e barata, essencial para o modelo econômico vigente, e impede que grandes parcelas da população ascendam socialmente ou questionem o status quo.

Um indivíduo sem o capital cultural e a formação crítica do ensino superior ou mesmo médio é menos propenso a participar de debates políticos complexos e a se organizar em movimentos sociais.

A narrativa oficial muitas vezes foca na “falta de interesse” ou “desistência” do aluno, individualizando a culpa. Esta é uma tática política que desvia a atenção da responsabilidade do Estado pela falta de investimento, de merenda adequada, de apoio psicossocial e de programas de permanência. Ao negligenciar essas políticas, o Estado produz o abandono como resultado de suas escolhas de alocação de recursos. Nesse caso, o “abandono” dos jovens pela escola é, na verdade, a escolha política de não garantir as condições para que eles permaneçam e prosperem.

A perspectiva de que “abandono é projeto político” também se aplica de forma intensa às áreas da saúde pública e da segurança, revelando como a negligência pode ser uma ferramenta estratégica de gestão social.

Na saúde, o abandono não se manifesta apenas como falta de recursos, mas como a produção de doença e morte em grupos específicos. O filósofo Achille Mbembe define esse tipo de gestão como “necropolítica,” quando o poder decide quem pode viver e quem deve morrer.

O sucateamento intencional de hospitais públicos, a falta de médicos e a escassez de medicamentos essenciais, especialmente em periferias ou regiões remotas, não são meras ineficiências. É criada uma crise de acesso à saúde que afeta desproporcionalmente os mais pobres.

Ao desmantelar o sistema público, o projeto político do abandono fortalece a saúde suplementar privada. A população com mais recursos migra para os planos, deixando o sistema público com menos apoio político e financeiro, enquanto a população pobre é forçada a aceitar condições de atendimento cada vez mais precárias ou a morrer na fila.

O abandono da saúde pública transforma o direito constitucional de acesso à saúde em um privilégio de classe. O Estado abdica de sua função de cuidado universal e seletivamente “abandona” os cidadãos que considera menos prioritários, cujas vidas têm menos valor político e midiático.

Na área da segurança, o abandono opera de uma maneira ainda mais perversa: a ausência de políticas públicas de cuidado e desenvolvimento caminha lado a lado com uma presença policial ostensiva e violenta.

O projeto de abandono retira das comunidades vulneráveis (favelas, periferias) acesso a bibliotecas, escolas de tempo integral, saneamento e oportunidades de lazer. Esse vazio socioeconômico é o abandono que gera um contexto fértil para a violência e o crime.

Em vez de combater o abandono com investimentos sociais, a resposta política é uma solução meramente repressiva. A segurança é traduzida unicamente pela presença de forças policiais que, por sua vez, agem de forma seletiva e violenta, focando na criminalização da pobreza e na manutenção do controle territorial, e não na promoção da segurança cidadã.

O abandono prévio (de direitos e infraestrutura) permite que a violência estatal posterior (o que se conhece como “guerra às drogas” ou “intervenções”) seja vista como uma resposta necessária ao caos gerado. A tragédia e o alto índice de mortes nesses locais são, de certa forma, o resultado esperado e politicamente funcional desse projeto de abandono combinado com a repressão.

Em ambos os casos, o que a sociedade percebe como uma falha ou um desastre natural (uma epidemia incontrolável ou a violência crônica) é visto pela análise crítica como a concretização bem-sucedida de um projeto político de exclusão e seletividade.

Combater esse projeto político é tarefa primordial para a manutenção mínima do Estado Democrático de Direito, por uma sociedade mais justa, igualitária e sócio ambientalmente equânime. Essa é a nossa tarefa e precisamos nos organizar nesse sentido, o mais rápido possível.


Mário Camargo é jornalista.

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