A Terceira Margem do Saber

A Terceira Margem do Saber

Residente numa pequena cidade do interior do Estado de São Paulo, ele era um menino como tantos outros de seu tempo: frequentava escola pública, corria atrás de bola, jogava peão, arriscava pescar eventualmente. Mas algo o diferenciava dos demais — e era impossível negar: a presença de uma mãe zelosa, disciplinadora, controladora, que o moldava na base dos costumes e das tradições, tendo a religiosidade como o maior patrimônio familiar.

Na infância, valeu-se dos princípios familiares para moldar sua conduta, o que não foi de todo mal, pois foi assim que aprendeu a prever situações iminentes, livrando-se de confusões. Além disso, a cautela e o discernimento favoreciam-no a agir sempre dentro das regras do jogo, desenvolvendo, dessa feita, uma personalidade própria e isenta das tiranias tribais, firmando cada vez mais a imagem de pessoa respeitável — para orgulho da família.

Considerando a imprevisibilidade da vida, no período da faculdade aproximou-se de uma mulher acolhedora e devassa, e se apaixonou por ela, assumindo matrimônio. Seu nome era Ciência. E ela, por caminhos tortuosos, inseriu-o num universo novo, mundano e desconhecido, que transformou sua vida.

Pelas mãos dela, formou-se em Química e passou a lecionar. Mas agora, homem feito, a única coisa que desejava era a desarmonia familiar, pois acreditava que a Ciência poderia dar as mãos à Religião e, não obstante, desejava presenciar Marx palavreando com Jesus. Mas… até então, não sabia como resolver seus conflitos internos.

Vivendo sua vida de casado com a Ciência e dentro dos bons princípios assumidos em família, pretendia ser fiel ao compromisso que assumira. Embora considerasse até então impossível a conciliação, dedicava suas ações propondo interações para o desenvolvimento humano e realizações familiares exigidas em qualquer casamento tradicional. Mas a vida, que não é poça estagnada, mas água corrente, proporcionou-lhe uma surpresa inesquecível…

Depois de um período de hesitação e estresse, a conciliação desejada e inesperada veio pela ação de uma amante — sim, uma amante: a Literatura — que evitou o divórcio e conciliou seus três mundos. Nunca imaginara que a troca do imaculado leito matrimonial por uma paixão de alcova fosse conciliar sua bela trajetória! Pois foi na Literatura que conseguiu o que lhe faltava: a expressividade e a argumentação incontestável para as teses perante a vida.

A Ciência, sua esposa de olhos frios e mente afiada, o conduzia com mãos firmes pelos corredores da razão. Falava pouco, mas quando falava, era com precisão cirúrgica. “Felipe, não se distraia com devaneios. O mundo precisa de fórmulas, não de metáforas.”

Já a Literatura, sua amante de voz rouca e perfume de papel antigo, surgia nas madrugadas, sentava-se à beira da cama e sussurrava: “Felipe, vem. Deixa que eu te ensino a dizer o indizível, afaste-se um pouco, faça como o homem do subsolo!.”

A Ciência o olhava com desaprovação quando ele voltava com os olhos marejados de poesia. A Literatura, por sua vez, ria com malícia, sabendo que ele jamais a abandonaria.

E foi nesse triângulo — entre a lógica, a fé e o verbo — que Felipe encontrou sua síntese. A Ciência lhe deu o método, a Religião, o mistério, e a Literatura, a alma.

Hoje, o professor Felipe ministra aulas de Química interagindo com clássicos da Literatura, conseguindo cumprir, antes da meia-idade, o que Bentinho, em Dom Casmurro (Machado de Assis), não conseguiu: unir as duas pontas da vida. E, sendo sua bela existência revisitada, seus feitos são passados de geração em geração por alunos que o amam, mediante a oralidade — como na Idade Média — antecipando a Brás Cubas (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis), “…relatar sua bela experiência antes que os vermes comam sua carne — e que a alma, enfim, se torne verbo”.


Gilmair Ribeiro da Silva é professor de Língua Portuguesa em Escola Pública. É autor dos livros: “Os Muros e o Silêncio da Cidade” e “Algemas, Cupins e Palavrões.” 

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