A ancestralidade talvez possa ser compreendida menos como uma essencialidade, a definir o que somos, e muito mais como uma dimensão cultural indelével, registro de uma memória coletiva que permanece latente, sendo capaz de se manifestar a partir de profundas experiências que tomam o campo dos afetos, ensinando como a vida, apesar de tudo, pode ainda ser interessante e plena de possibilidades. Herdeira de uma ancestralidade genuinamente humana e brasileira, Maria Mendes dos Santos era carinhosamente chamada de tia Lia. Solteira, tia Lia passou a sua vida inteira ao lado de Dona Paula, sua irmã mais próxima em idade. Para os 6 filhos de Dona Paula, tia Lia foi como um duplo de mãe, presente ativamente na criação de todos, inclusive, nos momentos mais difíceis – que não foram poucos – ajudando a sustentar materialmente. No ofício de tia/mãe, Lia exercia sua função de maneira leve, revelando-se como presença generosa, cuidadosa e afetiva.
A trajetória existencial da tia Lia, com sua incrível jornada de migrante nordestina, demarcada por tantas situações de superação, não deixa de refletir o rosto e a identidade mais genuína do próprio Brasil. Maria Mendes dos Santos nasceu em 1939 na Bahia, na histórica cidade de Inhambupe, que remonta ao século XVI. Sendo seus pais pequenos agricultores, tia Lia viveu sua infância e parte de sua juventude com seus 8 irmãos na Serra do Aporá, no interior da Bahia, trabalhando na roça. Como irmã segunda mais velha, Maria ajudou a criar e cuidar de seus irmãos mais jovens. Em um altruísmo prático, desde sempre, tia Lia cultivou a vocação do cuidar da casa, dos irmãos, dos sobrinhos, das pessoas – muitas vezes se esquecendo até de si mesma para se dedicar integralmente ao próximo.
A mudança, com seus 19 anos, para a cidade de São Paulo, em uma autêntica epopeia, viajando por uma semana inteira na carroceria de um caminhão, na precariedade e desconforto de um pau-de-arara, registra uma outra fase na vida de tia Lia, que deixa, definitivamente, o território da Bahia, passando a morar na grande metrópole de São Paulo. Com o coração cheio de esperanças e o olhar em novos horizontes existenciais, tia Lia deixou as vicissitudes da vida na Bahia, mas nunca abandonou as belezas, generosidade e riquezas de todo seu baianês.
Na década de 30 até os anos 60 do século passado, era comum os migrantes viajarem da Bahia para São Paulo em pau-de-arara. Era uma viagem bem longa, que durava cerca de uma semana inteira. Na carroceria de um caminhão, colocava-se alguns bancos de madeira e cobria-se com uma lona, para proteger do sol escaldante ou mesmo da chuva fina. Os passageiros disputavam lugar com os sacos de farinha, que também eram transportados para a capital econômica do país. A dureza daquela viagem, de certo modo, já antecipava o destino do migrante. Tia Lia, como tantas Marias, era, sobretudo, uma mulher forte, capaz de aguentar as dificuldades que lhe eram impostas, mas também de compreender as belezas sutis conquistadas por uma vida tomada pela mais sincera e profunda esperança.
Com a altivez e o otimismo de uma nordestina que descobre o mundo, tia Lia aprendeu, paulatinamente, a amar São Paulo, como tantos migrantes que construíram esta cidade. Mesmo diante de tantos preconceitos e racismos mal disfarçados, vivendo no contexto de múltiplas violências na periferia da cidade, madrugando para percorrer em tempo os longos e cansativos trajetos em transporte público até o trabalho, nada foi capaz de corromper a doçura terna e serena, a concepção ética, cheia de dignidade, da jovem migrante da Bahia, que vencia os desafios naquela Selva de Pedras.
Agora é tempo de sentir as ausências e soltar o pranto, recompor as muitas memórias, pois tia Lia passou a repousar na Transcendência da Vida. Fica um sentimento que é uma mescla de nobreza e dignificação, por ter tido o privilégio de compartilhar e conviver, no tempo histórico, com uma humanidade tão singular e pujante, depositária de uma ancestralidade que se faz perene, a apontar para uma vida plena de sentido. Nossa mais profunda gratidão, amada tia/mãe Lia.
Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba.
