É assustador como nas sociedades contemporâneas tudo tende a se perder rapidamente. É um mundo sem memória, desprovido de tradições, tomado por rupturas e descontinuidades. Há uma necessidade quase frenética de atualização. Em linguagem tecnológica, há sempre uma nova versão a ser baixada, por isso a importância de se estar em contínua conexão, para não se ficar ultrapassado, descontextualizado. Nessa dinâmica, o olhar contemporâneo, definitivamente, deve estar sempre voltado para o futuro, nunca para o passado. É preciso estar antenado, alinhado às novas tendências tecnológicas e do mercado global, para não receber a alcunha de démodé, antiquado, fora de contexto.
Obviamente que tal lógica de pensamento serve, sobretudo, a uma sociedade que produz abundantemente e em uma velocidade alucinante, tendo a urgência de que nada tenha durabilidade. É a sociedade dos bens não duráveis. É preciso que tudo seja descartado, para dar vida e dinamicidade ao mercado. Para tanto, criam-se falsas necessidades. Na lógica do consumo, tudo é passível de troca, de substituição. Assim, o supérfluo passa a desfrutar da condição de fundamental, essencial, imprescindível.
A questão é que esse implacável movimento extrapola o âmbito da produção e do consumo, alcançando outras esferas da vida, inclusive no campo da ética e da própria espiritualidade. Refletindo a lógica do mercado global, nada mais tem sentido perene, tudo pode e deve ser suplantado. O resultado pode ser a anulação e o esvaziamento das dimensões da ética e espiritualidade.
Em evidente descompasso com perspectivas contemporâneas, a espiritualidade cristã movimenta-se a partir de princípios sedimentados em genuínas tradições mais que milenares. No limite mais profundo, a espiritualidade cristã encontra suas raízes e referências fundamentais no próprio Movimento de Jesus Cristo. Assim, qualquer projeção para o futuro exige que se vislumbrem antes as representações basilares do passado original, concebido como fonte de toda herança espiritual cristã e critério valorativo de análise.
O olhar para o passado não significa, de forma alguma, a renúncia das possibilidades da vida no presente e futuro. Apenas aponta que esses três momentos não devem ser compreendidos como estanques e descontínuos. Há uma sabedoria perene – a espiritualidade cristã – que os integra, atribuindo sentido à própria existência. Nessa direção, o futuro se revela e se projeta como um delicado convite, tempo privilegiado para se construir, tecer, perspectivar a vida.
O movimento de voltar às fontes primeiras da tradição cristã configura-se como essencial, para que a vivência da espiritualidade seja plena de sentido e rica de significado. O conhecimento do passado desvela-se então como inspiração fundamental à vida presente e projetos futuros. O tempo da Páscoa configura-se como o mais forte e contundente convite para se retomarem princípios fundamentais da espiritualidade cristã. As celebrações, liturgias, rituais, eventos, musicalidade, encenações a envolverem o período pascal compõem um fecundo movimento de voltar-se para o passado – o reencontro com o próprio Jesus, em seus gestos definitivos –, de maneira a repropor, resgatar as referências fundantes da civilização cristã.
Voltar às fontes genuínas da tradição cristã – alcançando o próprio movimento de Jesus – consiste em um caminho essencial para que as práticas rituais vivenciadas hoje, nas diversas designações cristãs, não percam sua razão e vitalidade. Sem a perspectiva do passado, corre-se o sério risco de que tantos gestos, representações, ritualidades não passem de meras formalidades, vazias e desconectadas da própria maneira concreta, real de se viver.
Uma sociedade sem memória pode edificar um tempo sem referências, tomado por pessoas perdidas, perplexas. Quando descontextualizado, desenraizado de sua dimensão histórica o futuro pode se anunciar como um devir de lacunas e incertezas. A celebração da Páscoa compõe-se como um singular momento para se revisitar toda beleza e profundidade da proposta cristã, a projetar um futuro repleto de possibilidades.
Adelino Francisco de Oliveira é doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Braga/Portugal e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
Parabéns Prof. Adelino Francisco pela sua reflexão sobre a Páscoa cristã! Pessoas assim, como você, são como luz no meio de tanta desorientação que existe na sociedade de hoje.
O Ressuscitado caminha conosco na Galileia do nosso cotidiano, ali o vemos, ali o encontramos, ali o comunicamos aos irmãos e irmãs que vamos encontrando. Bom caminho com Ele! Ninfa
Prezada Ninfa,
Estimo que esteja bem!
Agradeço pela partilha e cumplicidade de olhar. Precisamos sim, viver experiências profundas de ressurreição em nosso cotidiano.
Cordialmente,
Parabéns por suas reflexões professor. É “incomodante” o ritmo atual das pessoas, sem perceber estão caminhando para um poço sem fundo e caem cada dia um pouco mais e parecem não pensar. Vemos um mundo voltado para o egoísmo, olhamos para os mais necessitados e não nos causa mais desconforto, preferimos que fiquem a mingua e que seja retirada toda sua cidadania. Alguns projetos públicos tentando diminuir a pobreza são constantemente atacados, pode ser que tenha erros e defeitos, porém para mim e neste caso, os fins justificam os meios. Penso muito em Jesus e seus ensinamentos e penso que poderíamos fazer sempre um pouco mais para os mais necessitados, e não achar que fizemos nossa parte ao dar uns trocados a elas no semáforo. Não iremos utilizar nossas conquistas materiais após esta encarnação.
Prezado Luis,
Agradeço pela possibilidade de interlocução. A perspectiva cristã é afrontada diante de uma realidade tão marcada pela insensibilidade, indiferença e desigualdade social. É preciso perseverar na esperança, mas também recompor as forças na militância e luta política.
Cordialmente,
Prezado Professor Adelino,
Belíssima reflexão. É pena, mas a existência humana, plena de possibilidades, tem se resumido ao consumo e ao temor de se tornar obsoleto. Que possamos, em Cristo ressuscitado, olhar para “As aves do céu” e perceber a beleza dos “Lírios do Campo”.
Abraço,
Raul Rozados
Caro Raul,
Compartilho da sensibilidade de seu olhar, que aponta para a urgência de construirmos outras relações, dinamizadas por uma lógica cristã e humanizadora.
Abraços,
Meu professor Adelino,
Como são sábias suas palavras, a sociedade ainda não percebeu o quanto vive freneticamente e muitas vezes sem objetivo algum. Apenas para servir a um modismo tecnológico e midiático.
Saudades. Saiba que você é um grande exemplo de professor. Te admiro.
Um grande abraço.
Olá querida Vânia,
Estimo que esteja bem!
É bom encontrá-la no espaço do Diário do Engenho. Talvez uma maneira de resistirmos a uma dinâmica de consumo vazio seja justamente pela via da reflexão. Assim vamos discutindo ideias e construindo novas possibilidades.
Um abraço fraterno,