A Palestra do Machado

A Palestra do Machado

Leitor proficiente, devorador de bons livros, versado em clássicos da literatura, o professor Bruno Medina lia em média um exemplar ao mês há mais de vinte anos. Seus alunos o identificavam pela erudição, já os vizinhos e amigos pela biblioteca organizada na parte superior da sua casa. Mas apesar de toda a sua experiência de leitura, ainda não havia visitado uma cidade gigantesca de livros; por isso mesmo fez da Bienal Internacional do Livro de São Paulo de 2024, o evento mais esperado e espetacular dos últimos anos de sua vida. Para tanto, às vésperas da aposentadoria, visando a gratuidade, cadastrou-se como professor três há meses do evento tão esperado, para onde seguiu na companhia de oito amigos que frequentavam o grupo de leituras.

Aproveitou a viagem para fazer uma relação minuciosa dos livros que gostaria de comprar e, logo, formalizou uma lista de respeito, provocando risadas dos amigos ao  lembrar das recomendações dadas, cotidianamente, aos alunos: de que se ocupassem menos com os celulares em sala de aula, utilizando tempo e energia com boas leituras, já que tais práticas poderiam garantir, ao menos, o básico para organizar ideias e garantir uma interpretação autônoma e competente do mundo  –  para tristeza de influenciadores e youtubers que perderiam seguidores e em muitos casos eleitores.

Entretanto, não tinha ilusões, pois sabia de antemão, que poucos dariam crédito aos seus ensinamentos, ainda assim, mantinha a postura e compostura; e, como gostava de dizer: queria terminar a carreira de maneira digna, saindo escola pública como entrara: pela porta da frente. O maior problema encontrado e o mais difícil de administrar era o de sempre: celular nas mãos de alunos em sala de aula.

A maioria dos alunos, após à pandemia se tornou escravo de tais aparelhos – miseravelmente utilizados para malditos joguinhos e banalidades; professor raiz, como se nominava, sentia vontade de se demitir toda vez que observava que os discentes em tais situações não se habilitavam nem mesmo a fazer uma mísera pesquisa para fim pedagógico; e que, Igualmente aos filhos, nas reuniões bimestrais, a quantidade insignificante de pais e responsáveis que frequentava a escola nessas ocasiões se ocupava mais com os celulares que ouvir as falas de gestores e professores.

Enquanto fazia essas reflexões, que não era novidade a nenhum do grupo, pois eram todos professores vocacionados, lembrou que nada poderia dar errado, pois este era o último dia do evento, oportunidade única de dar às mãos à personagens e autores, como gostava de dizer.  Ficou encantado ao presenciar uma multidão à sua frente ofuscando sua visão. Mas também, um pouco atrapalhado, pois estava acostumado à vida pacata do interior. O congestionamento o surpreendera, principalmente por tratar-se de local de exposição de livros; mas logo seus olhos se acostumaram, principalmente quando se pôs a caminhar por livrarias e locais de eventos artísticos com desenvoltura. Era o banho de cultura esperado.

– Olhou de lado disse: – “não acredito: um Dostoiévski capa dura a trinta reais!

Mas deixou para mais tarde…. pois ele e os amigos tinham uma missão: visitar a “Casa do Machado de Assis” que lhes disseram estar instalada na Bienal de 2024. Ocorre que diante do trânsito de pessoas, acabou se perdendo dos amigos, ficando combinado então por celular que cada qual, organizasse seu próprio roteiro, por uma questão de liberdade, restando como ponto de encontro a condução estacionada para retorno às dezessete horas.

A sorte estava do seu lado, encontrou rapidamente a “Casa do Machado” e ela era realmente magnífica, tinha até manuscritos assinados pelo homem, vejam só!  Não, na casa do Machado, não poderia estar sozinho, ao menos o Rafael e a Fernanda seriam “intimados” a comparecerem àquele local!

Foi então que resolveu enviar mensagens de celulares a eles:

– Estou aqui na casa do Machado de Assis, vamos filmar e fotografar aqui!

Não consigo encontra-la disse Rafael, mas estou vendo a poucos passos um rapaz com uniforme de orientador, que, como nossos alunos, não tira os olhos do celular, ele deve saber…

                Envolvido como estava de usufruir do passeio de uma maneira inesquecível, e não sendo dado a ficar o tempo todo ao celular, acabou visitando, fotografando, filmando e comprando livros até que deu por conta de que se aproximava a hora de ir para a condução, finalizando a participação à bienal de 2024.

                Mais tarde, já no interior da condução, soube do acontecimento que motivou os amigos Rafael e Fernanda a abandonarem a visita à casa do Machado, cujos fatos foram assim relatados pelos próprios amigos:

                Rafael aproxima-se do orientador e pergunta:

– Onde está instalada a casa do Machado de Assis, que não estamos encontrando?

O rapaz, sempre envolvido com o celular, respondeu:

– Eu também não sei, mas deixa ver, e pegou uma listar e passou a procurar o nome, não tendo encontrado o nome “Machado de Assis” na lista, perguntou

– Ele fez palestra aqui hoje?

Enquanto a esposa Fernanda olhava espantada sem saber o que dizer, Rafael com cara de deboche, respondeu:

– Não, O Machado não fez palestra hoje na Bienal, pois seria impossível, já que sua morte aconteceu em 1908; a não ser que Brás Cubas o tenha representado.

 


Gilmair Ribeiro da Silva é professor da Rede Pública do Estado de São Paulo – autor do livro “Os Muros e o Silêncio da Cidade”.

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