A narrativa se parece com a música porque ambas dão conteúdo ao tempo – escreveu Thomas Mann em A Montanha Mágica. Porque o tempo da vida que temos – regulado pelas horas, minutos, segundos –, o tempo da música que ouvimos – subdividido em notas, pausas, compassos – e o tempo da narrativa que criamos e vivemos se preenchem de sentido em matéria bruta, lapidado para se tornar acontecimento.
Por isso, como afirmou Benedito Nunes, a primeira (a narrativa), completa o tempo com essa matéria dos acontecimentos na forma de sequência, a segunda (a música), mede-o e subdivide-o. “Sem essa medida e esse preenchimento” – disse ainda Nunes – “fica-nos do tempo, que é invisível, como dele afirmou o filósofo Kant, um esquema vazio.” Em inversão óbvia desse esquema, o vazio se faz dentro de nós e no universo quando se cala a música e cessa nossa percepção da história que de repente ouvimos e vemos.
Certamente, a percepção desse vazio se faz clara quando chegamos ao final de um livro, ao fim de um romance ou quando terminamos de ouvir uma música que nos comove. O tempo preenchido pela matéria dos sonhos se aparta de nós e nos deixa ainda vibrante em nossos sentidos (justamente eles) o impacto do lido e do ouvido que por alguns instantes atrás havia nos tirado o vazio (da vida) e nos dado (olha aqui a palavra mágica de novo) sentido.
E o sentido me escapou de novo nesta manhã cinza de sábado – 25 de maio, ao que pese as manhãs cinzas, como já escrevi várias vezes, me encherem a narrativa da vida de uma cena acolhedora e doméstica. Mas hoje, confesso, foi diferente. O texto pronto para ser publicado como crônica de sábado me aguardava no computador – mas perdeu a razão. O sábado cinza me cobrava outro (me cobrava este). A música leve que me acompanha nessas manhãs entre as postagens que faço e as leituras dos jornais também não ecoou. Agora, enquanto escrevo, só há café, silêncio e calma desafiando (outra vez) o sentido da vida.
Do outro lado do sábado, a concretização do fim terreno e imediato de uma narrativa e de uma música. A passagem de Eloy Porto Neto – músico genial e doce, de olhar e espírito generosos e ternos – finda no plano de se pegar com as mãos a realidade do seu tempo – que foi tão curto –, cheio de possibilidades e criações de sentido. Cessa uma narrativa. Finda uma música. Um vazio – momentâneo – se faz.
Momentâneo porque a memória já se levanta em nostalgia e lembranças a ressignificar esse sentido – e o que foi por esse artista tão querido criado e produzido se torna sua existência perene. Se breve é a vida e longa é arte – vita brevis, ars longa, como escreveu Hipócrates – Eloy segue entre nós em presença forte que só a arte, sob quem poder não tem a morte (para ainda lembrar Camões), permite e faz.
Aplausos e agradecimentos a ele são todos poucos. Recuperar o sentido de sua narrativa e de sua música de agora em diante é o que nos apartará desse vazio – e será sempre o que de melhor se poderá fazer em sua homenagem e para a contemplação de sua vida, ainda a dar (com sua arte que fica) parte do sentido da nossa.
Com uma reverência saudosa e sentida.
Alê.
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.
(Fotos: ensaios do grupo Falando da Vida/2011).