A Igreja em silêncio

Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre essa pedra edificarei minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que você desligares na terra será desligado nos céus.

Mt 16,18-19

 Papa

O anúncio público da renúncia do Papa Bento XVI lançou sobre o universo cristão católico certa perplexidade e profundo silêncio, não deixando de suscitar várias questões tanto para a própria Igreja em particular, mas também para o mundo em geral. A renúncia de um papa é fato raro na longa história da Igreja, apesar de estar em consonância com as diretrizes do Direito Canônico (Cân. 332, §2). Todas as abdicações papais anteriores estão intrinsecamente relacionadas com períodos de grandes crises no seio da Igreja. É preciso ler e interpretar a renúncia de Bento XVI na perspectiva dos sinais dos tempos, a partir do momento teológico que a Igreja vive.

Em um contexto geral de cultura relativista, de claro avanço de filosofias hedonistas e niilistas, a Igreja também sofre as dores do mundo, inclusive internamente no cotidiano das estruturas eclesiais e religiosas. A miséria material e espiritual acaba por definir a existência de milhões de pessoas, mesmo em um universo em que o cristianismo se compõe como a maior religião em número de adeptos. Um cristianismo, em sua diversidade de igrejas, cada vez mais distante da ética de sumo amor e serviço de Jesus Cristo, revelada em sua proposta de abundância de vida para toda a humanidade.

O ato voluntário da renúncia do pontificado de Bento XVI está revestido de um significado profundo, contemplando representações simbólicas, a comunicarem uma importante mensagem ao mundo católico. É preciso se aproximar do sentido de tal renúncia tomando uma ótica complexa. Para além do fato objetivo da renúncia de Bento XVI, desdobram-se alguns aspectos, conjecturas fundamentais de conteúdo teológico, a serem corroboradas pela história.

É necessário, antes de qualquer ponto, se considerar, contemplar o perfil pessoal de Papa Bento XVI. De postura mais intimista, introvertida, o Papa Ratzinger é sobretudo um homem do pensamento profundo,  essencial. Seus escritos revelam um conhecimento teológico denso e elevado, apto a resgatar elementos de uma tradição cristã genuína, originária. Talvez a forte dimensão intelectual, a alta teologia, de concepções e convicções claras e elaboradas, configure-se como um impedimento para um fazer muitas vezes marcado por rotinas administrativas, burocráticas, pragmáticas, distantes de concepções teológicas elevadas, avessas a concessões a todo relativismo contemporâneo.

A renúncia ao múnus petrino não deixa também de contemplar uma postura de total despojamento, de abdicação do poder. Talvez Bento XVI coloca-se livre perante o fascínio, deslumbre que o poder é capaz de produzir. O gesto de renúncia ao múnus de Pastor supremo da Igreja pode desvelar a profunda convicção acerca de um poder que somente alcança sentido quando for totalmente serviço, a Deus e à humanidade. Sem as condições físicas e espirituais para servir, o poder passa a ser vazio, desprovido de qualquer representação, significado.

Tal gesto não deixa de conter, contemplar uma profunda dimensão de humildade e desprendimento. Reconhecer as próprias limitações diante de uma missão que é urgente, monumental, divina configura-se como postura, arraigada no senso de profunda responsabilidade, sensibilidade, humildade. O renunciar ao chamado pode justamente possibilitar o avançar, a realização da missão, a via para se alcançar o êxito, sempre cônscio de que quem guia de fato a Igreja é o próprio Jesus Cristo.

Todavia, sugere-se um prisma conjectural a ser vislumbrado. A dimensão da fraqueza, da angústia humana diante de uma missão revestida de sacralidade, de total entrega. Há uma bela tradição apócrifa, registrada na obra Quo Vadis, de 1895, do escritor polonês Henryk Sienkiewicz (1846-1916), que conta uma pseudo aparição do próprio Jesus Cristo a Pedro, quando este deixava Roma com o intuito de escapar da terrível perseguição do imperador Nero. No caminho de fuga, Pedro teria se deparado com Jesus caminhando em direção a Roma. Encontrando Jesus, Pedro teria indagado: Aonde vais, Senhor? (Quo vadis, Domine?). Jesus teria respondido a Pedro: Vou para Roma, ser crucificado outra vez, pois você está a abandoná-la. Diante de tal visão, Pedro refaz o caminho de volta a Roma, entregando-se à missão até o martírio.

Em todo caso, muito além de qualquer conjectura ou cenário, a renúncia do Papa Bento XVI pode representar um contundente sopro de renovação, capaz de suscitar um momento novo na Igreja. A concepção teológica a transmutar o poder em entrega, serviço a Deus e ao próximo deve prosperar no seio da comunidade cristã, especialmente em dinâmicas mais presas, enclausuras a hierarquias. A difícil experiência do reconhecimento das fragilidades, debilidades inerentes ao humano pode se compor como expressão de notória humildade, suscitando uma Igreja mais fraterna, solidária, receptiva a estruturas mais colegiadas, comunitárias, democráticas.

A sensibilidade que brota da aceitação das limitações humanas pode promover uma profunda renovação espiritual, abrindo a Igreja a um sincero diálogo com as questões fundamentais do contemporâneo. Fundamentalmente, que a renúncia de Bento XVI componha-se menos como um gesto de ausência de coragem, mas como uma decisão teologicamente articulada para lançar, impulsionar a Igreja a um movimento de maior aproximação, em fidelidade criativa, ao projeto de amor que Jesus Cristo revelou à humanidade e confiou à Igreja, povo de Deus. Para além do silêncio descortina-se a serena esperança.

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Adelino Francisco de Oliveira é teólogo, filósofo, professor universitário e doutorando pela Universidade de Braga/Portugal – onde pesquisa acerca do Evangelho de João.

16 thoughts on “A Igreja em silêncio

  1. ‘abalado por questões de profunda relevância para a vida da fé’ … o que será que nosso Querido Papa escondeu com estas palavras? questões de profunda relevância para que a Fé não morra?, quais seriam estas questões?

    temo ao imaginar o que poderiam ser… ao ponto de um Papa demitir-se.

    A meu ver a igreja católica tem um peso fundamental no equilíbrio das forças entre a paz e o caos, enfraquecida e desacreditada pode gerar consequências inimagináveis.
    infelizmente uma minoria barulhenta consegue abalar e enfraquecer uma estrutura
    milenar e nome da modernidade.

    veremos se houver um caos entre interesses das nações dominantes se esta minoria inconsequente (que só pensa em seu umbigo) consegue colocar as coisas em ordem fazendo manifestos com passeatas top-less.

    vejo que o elefante esta tombando diante de uma infecção provocada por uma mordida de formiga!

    1. Prezado Sr. Idinaldo,

      Você trabalho com metáforas bem interessantes. Talvez o Papa esteja assumindo, no limite, uma postura de denúncia frente a uma estrutura de poder. A verdade emergirá, mas é preciso paciência histórica. Não há dúvida que a Igreja Católica desempenha um importante papel na conjuntura mundial, talvez o que Bento XVI busque seja justamente tornar este papel mais próximo da profunda ética de amor dos Evangelhos.

      Esteja bem!

      1. Prof. Adelino, tenho certeza de que ele assumiu esta postura no LIMITE de suas forças, talvez como unica opção de chamar atenção das massas quanto aos problemas que degradam a Santa Igreja, claramente sua intenção é a de alcançar a atenção das ovelhas e dar um alerta aos seus, mas a mídia esta ai… para ofuscar suas intenções e volta-las para a sucessão.
        não sou católico apostólico romano, mas concordo plenamente com o Pontífice quando disse hoje que a ‘Liturgia foi banalizada’… infelizmente a muito tempo que em sua grande maioria ser Católico Apostólico Romano não é sinal de religiosidade!
        parabéns pelas suas matérias, sempre tem um ponto de vista da qual eu não havia notado.

        1. que Deus permita que as intenções do Papa Bento XVI sejam alcançadas, e que o próximo Papa seja iluminado a ponto de colocar a casa em ordem. Será um bem a humanidade!

          1. Prezado Idinaldo,

            É muito importante perceber e levar em consideração alguns aspectos próprios da concepção de Igreja de Bento XVI. A renúncia pode assumir muitas conotações, dentre elas a questão da centralização do poder papal. É preciso se pensar uma Igreja mais obediente e fiel ao Evangelho, mas ao mesmo tempo aberta e sensível, comprometida sobretudo com a edificação de estruturas sociais mais justas.

            Esteja bem!

  2. Prof. Adelino.
    Como sempre, aprendo bastante com suas análises de acontecimentos importantes e de realidades que nos angustiam no mundo atual.Como leiga, e já acostumada às suas reflexões, esperava ansiosa uma manifestação sua aqui no Diário sobre a renúncia de Bento XVI. Gostei bastante.
    Já li e escutei muita coisa sobre o assunto. Depois de acompanhar a triste deterioração da saúde de João Paulo II, fiquei pensando se foi exatamente essa exposição que ele quis evitar. Certamente, não. Não seria esse mais um ato de vaidade do que de coragem e humildade?
    Infelizmente, se aceitarmos a linha de análise que fala das pressões a que ele se submeteu, da luta pelo poder e mazelas nos bastidores do Vaticano, que somente a História poderá nos mostrar, olho com ceticismo a possibilidade do sopro de renovação, de um momento novo para a Igreja.
    Com profundo conhecimento teológico, um importante intelectual, como li em várias matérias, podemos imaginar como se tornou difícl para ele se submeter a essa cruel conjuntura. Somente especulações?
    Esperemos que o silêncio e a sabedoria divina leve aqueles que decidirão a eleição para a escolha do novo pontífice a uma profunda reflexão e, como o senhor escreveu, possamos sentir essa serena esperança. E que essa eleição possa se preocupar com o sagrado, o divino do cargo papal. E, desse modo, o novo papa possa viver em plenitude seu pontificado.
    Sou grata por me fazer sentir esperança.

    1. Estimada Zilma Bandel,

      A renúncia de Bento XVI não é tema fácil de ser interpretado. O que está em questão é a própria representação ssimbólica que reveste o papado, que não pode ser reduzida a um simples cargo. A esperança é que todos esses fatos possibilitem o desperta de uma Igreja mais sinsível e humana, sob o signo de Pedro, que deve ser mais gruta e menos pedra, na medida em que protege e acolhe.

      Esteja bem!

  3. Prof. Adelino
    Sua análise é perfeita e completa, destacando os aspectos teológicos e simbólicos da renúncia do Papa Bento. Gostaria de ressaltar a crise econômica da Europa,que afeta diretamente a Igreja Institucional, e o fato que chama atenção é o anúncio nesta sexta-feira do alemão Ernst von Freyber como novo presidente do Banco Vaticano. Parece que um verdadeiro caldeirão se instalou na cúpula da Igreja.

    1. Estimado Contini,

      Agradeço pela oportunidade de interlocução. Seu comentário avança para uma dimensão profunda e crítica, não contemplada em meu texto. De fato, o contexto econômico que deve ser considerado como de suma relevância na composição conjuntural da tanto da Igreja quanto da Europa.

      Esteja bem!

  4. Prof. Adelino,
    O Papa bento realmente revela certa coragem,humildade e despojamento do poder ao renunciar ao papado,no entanto,por pior que seja o estado físico e espiritual do pontífice,renunciar não me parece uma atitude cabível a não ser que algo esteja errado dentro da igreja,a não ser que tenha sido necessário ao Papa um protesto muito maior e abrangente(renúncia),do que simples discursos e homilias.
    Não entendo como são as divisões internas da Cúria Romana,nem os diferentes grupos que ali existem,contudo,não me parece “normal” que informações confidenciais de um pontífice,simplesmente “vazem” para a imprensa.
    Tirando essa estranha coincidência,a revista Época,que dedicou quase 20 páginas ao tema,destaca conflitos entre Bento e o Cardeal Tarcisio Bertone(presidente do conselho Administrativo),considerado o segundo homem na hierarquia da Igreja.
    Gostaria de saber sua opinião,caro Adelino,a respeitos das facetas politicas(internas da igreja) dessa histórica renuncia.

    P.S.:Sinto muita falta das suas aulas aqui no Dom Bosco Cidade Alta.

    Abraço!

    1. Estimado Giovanni Sarto,

      É realmente muito bom vê-lo por aqui. Também sinto falta das reflexões e debates em aula.
      O tema da renúncia de Bento XVI é mesmo bem complexo e não pode ser analisado a partir de um único prisma. Há sem dúvida disputas de poder no âmbito da Cúria Romana, mas há também questões pastorais e concepções eclesiais que devem ser consideradas. A Igreja está muito longe de uma concepção de poder como serviço. Penso que o significado mesmo da renúncia do papa somente será compreendido após o julgamento da história.

      Esteja bem!

  5. Oi, Adelino! Seu texto dá muito o que pensar. Acredito que essa renúncia tenha sido estrategicamente calculada para corrigir o rumo da Igreja. Resta ver se dará certo. Abraço!

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