Quem caminha nas trevas não sabe para onde está indo. Enquanto vocês têm a luz, acreditem na luz, para que vocês se tornem filhos da luz.”
Jo. 12, 35c-36a.
A experiência pascal contempla e alcança uma dimensão que ultrapassa o campo religioso. Os eventos que envolvem e compõem a tradição da páscoa guardam fielmente, ao mesmo tempo em que celebram, os princípios basilares da civilização. A memória e vivência dos símbolos pascais podem configurar-se como via de resgate e reencontro do homem com sua própria humanidade.
Ora, o ritmo cada vez mais frenético da vida cotidiana, tomado pelas demandas da moderna sociedade de produção e consumo, tem lançado a existência humana no abismo mais profundo da angústia e depressão. A rotina de atividades profissionais, desprovidas de sentido e de caráter realizador, compõe um deplorável quadro de alienação. Toda perspectiva do ócio criativo e dimensão de busca pelo conhecimento perde-se em um contexto no qual a existência encontra-se dilacerada, limitada e reduzida à esfera da materialidade. Projeta-se e ganha espaço e relevância, então, a postura hedonista e niilista, focando a existência exclusivamente na busca pelo prazer, poder e dinheiro. Tal representação pode mergulhar a existência em um imenso vazio, evidenciando um intenso sentimento de desalento e desamparo.
A lógica do consumo e a noção de que a vida deve ser sempre fruição talvez reforce e possibilite aflorar forças primitivas de competição e violência, a conduzirem a dinâmica social para uma situação de caos e desarticulação. Em decorrência de um individualismo exacerbado, pautado na noção de exclusividade – cada indivíduo deve sentir-se como uma personalidade na eminência de alcançar o sucesso, mesmo que efêmero –, perdem-se os vínculos sociais e comunitários. Toda proposição de solidariedade e fraternidade tende a dissolver-se diante de um mundo centrado na visão de que acima de tudo se encontra a realização individual, a felicidade imediata, sem nenhuma relação com o bem coletivo.
Descortina-se o dramático escopo de uma crise civilizacional, que tem como base o fortalecimento do desejo mimético. Revelando-se como impulso violento, o desejo mimético busca, em última instância, a anulação e até mesmo a aniquilação do outro, considerado sempre como um rival, um competidor. Desencadeando um forte sentimento de inveja, a mimese conduz a um processo de intensa competição generalizada: o outro passa a assumir a representação de um autêntico inimigo. O desejo mimético configura-se no anseio – quase que a obsessão – de ter e ser o que o outro possui e é. Tal desejo imitativo – o termo mimesis é de origem grega e pode ser traduzido como imitação – é também apropriativo: o sujeito desejante enxerga no outro o sentido e a plenitude que não encontra em sua própria existência; vindo a buscar, dessa forma, apropriar-se da vida desse outro. Da dinâmica da mimese, emerge e sobressai o caos, a violência, a barbárie, a ruptura total com os princípios civilizacionais.
O mecanismo do desejo mimético pode desvelar-se como chave psicológica para compreender o dinamismo dos sentimentos e das relações no contemporâneo. A lógica mimética pode lançar o ser humano em um ciclo infernal, no qual o desejo somente alcança uma satisfação momentânea, nunca sendo completamente saciado. Claramente, na medida em que se realiza a apropriação e a identificação com o outro (objeto desejado), o mimetismo desencadeia um novo desejo, perpetuando o constante sentimento de falta e de vazio. No entanto, a falta e o vazio existencial – expressões do caos e da desordem interiores – delineiam-se como ausência de si mesmo, como profunda carência de humanidade. Interessa-nos esta carência existencial, que acaba por remeter o mundo contemporâneo para uma dimensão niilista, alicerçada, de maneira mais específica, nos sentimentos de vazio, angústia, náusea e tédio que parecem compor, em definitivo, o conturbado cotidiano.
A vivência de experiências pascais pode alcançar e assumir uma representação fundamental, na medida em que promove a libertação e salvação da humanidade do caos generalizado, desdobramento da livre fruição do desejo mimético. A páscoa faz memória de profundas e intensas experiências integradoras. No lugar da competição e da violência contra o outro – agora compreendido como próximo –, toma espaço e representação a dinâmica da solidariedade e do amor incondicional. Toda lógica do desejo mimético encontra superação na vivência cotidiana da elevada ética do amor, explicitada, de maneira inconteste, nos mistérios da paixão de Cristo.
O rico e belo relato dos evangelhos – fonte e inspiração para a civilização –, ao narrarem os eventos que compõem os passos da paixão de Jesus Cristo, apresenta um denso e significativo quadro de suplantação da lógica mimética. Ao entregar-se livremente para o holocausto – sem, contudo, ter cometido pecado algum –, Jesus Cristo faz de sua vida Dom, fundando uma nova dinâmica a pautar os relacionamentos. O amor ao próximo e a existência de serviço na gratuidade rompem, definitivamente, com todo desejo mimético. A ética do amor e a vida de serviço configuram-se como referências imperativas, absolutas e universais, a definirem o tom das relações. Fincam-se as sólidas e profundas bases da civilização.
A experiência pascal contempla, sobretudo, a perspectiva da ressurreição, a apontar a transcendência como destino último do humano. Abre-se, define-se um novo e amplo direcionamento para a existência: a vida não se esgota na materialidade. A ressurreição de Jesus Cristo alcança duas dimensões fundamentais. Primeiro, a compreensão da fé, evidenciando a certeza de que a vida transcende a morte. Depois, em sentido mais metafórico, os processos cotidianos de ressurreição, inerentes à própria existência: a virtude do perdão, a ausência de ressentimentos, a abertura para a mudança de mentalidade (metanóia), a esperança no humano etc. A ressurreição, em seu sentido mais pleno, pode promover o resgate definitivo do humano, suplantando toda situação de morte.
A experiência da páscoa aponta e evidencia que o princípio ético do amor e a prática do serviço conduzem à ressurreição: a vida renovada, o espírito radiante, o humano voltado para a liberdade, sua condição primeira. Diante disso, tudo mais perde importância e significado. A lógica mimética apenas reduz a vida a veleidades e ilusões, obscurecendo o sentido último da existência, que encontra sua morada no amor, pedra angular da civilização.
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Adelino Francisco de Oliveira é mestre em Ciências da Religião e professor de Ética e Filosofia da Faculdade Dom Bosco de Piracicaba.
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Seu texto chegou num bom momento para mim, Adelino. Ando pensando sobre as motivações da inveja. A parte em que você escreve sobre o desejo mimético foi muito esclarecedora. Parabéns pelo texto e obrigada!
Querida Carla,
Este é de fato um tema bem interessante e instigante… talvez a inveja tenha raizes muito mais profundas em nossa humanidade…
Esteja bem!
Creio que esse tema se encaixa bem com o contexto da pós-modernidade. A mudança dos valores que ocorreram com a implementação do modelo toyotista de produção, espelham muito bem a perda significativa de valores. Ou melhor, a inversão de valores. Minha interpretação está seguindo o caminho correto? Hahaha. Gostei muito do texto. Grande abraço!
Prezado Luis Gustavo,
Agradeço por sua interessante e rica interlocução… A sua interpretação, crítica e problematizadora, avança para enfrentarmos um tema que se faz urgente…
Esteja bem!
Parabéns ! adelino pelos seus escritos. realmente . o que o ser humano mais busca é satisfazer as suas necessidades pessoais ….e, não espiritual……. Espiritual só vejo ..quando as desgraças da ida se achega a portas de lares, lares destroçados pela falta de AMOR A VIDA! VIDA?.. VIDA QUE CADA INSTANTE NÃO É PRESERVDA EM NADA, POIS MAIS UMA SEMANA, e, a minha experiencia se faz junto a junto com pessoas mais sofridas tenho a sensação de estar andando em um lugar que o lixo humano é maior que certos lixo~es. ” as vezes me pergunto; será que nimguem teve um impacto com a ressurreição …., porque tudo caminha com a mesma velocidade. Na beira de um leito hospitalar vejo muitos andando com ritmo diferente. Um grande abraço amigo. sejas iluminado sempre!
Querida Ir. Salete,
Agradeço por seu comentário e interessante interlocução. Realmente no dia-a-dia não nos deparamos com muitos sinais de esperaça… No entanto sei de seu belo trabalho no hospital, sei de seu empenho e dedicação em prol da vida, para mim são autênticos sinais de ressurreição.
Esteja bem!
Caro Mestre Adelino,
VIVA A MASSIFICAÇÃO Cultural e Social!!!!
Muito interessante essa dinâmica atual de transformar feriados santos em puro comercio grassas a massificação do consumo e da alienação da população,que (do meu ponto de vista) vem da perca de poder que a igreja exercia sobre a sociedade, na qual deu-se espaço para as grandes corporações e a mídia… e por mair que seja a desconstrução da cultura intelectual ou mesmo (como nesse caso) religiosa aparenta-se ser um processo irreversivel pois acomodou-se no dia-a-dia tornando-se cultural, que criança n quer um ovo de pascoa? Contudo aqueles que buscam uma intelectualidade maior acabam achando em grupos fechados e que n tem muito contato com as outras camadas culturais pela própria rejeição q ambas contem….
Renan
Estimado Renan,
É bom vê-lo navegando e circulando pelo espaço do Diário do Engenho. Também é interessante constatar que você não arrefeceu na crítica contundente.
Esteja bem!
O dia em que as ideias morrem o individuo desaparece
Prezado Renan,
Muito bem! De fato, a capacidade de pensar e se posicionar talvez companham o que há de mais relevante e fundamental em nossa humanidade… No entanto somos bem mais do que ideias… a vida que pulsa em nós transcende as poucas ideias que conseguimos formular…
Um forte abraço!