A Evolução da Capoeira

A Evolução da Capoeira

A capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira. Afro, pois foi criada pelos negros africanos escravizados. Brasileira, pois foi criada em solo tupiniquim. Na panela de pressão, representada pelo período escravocrata, acrescentou-se os seguintes ingredientes: porções da herança das diversas culturas africanas, lascas de culturas nativas brasileiras, pequenos fragmentos da cultura europeia e, o ingrediente principal: amor à liberdade a gosto. Cozinhou-se esse preparo, em fogo alto, por 388 anos. E, em fogo baixo, requenta-se até hoje.

A expressão “amor à liberdade”, apresentada como ingrediente principal na receita do fazimento da capoeira, pode ser lida de forma romantizada, mas não se engane, essa expressão carrega toda a fúria diante da opressão e da violência que motivou os escravizados a elaborar essa poderosa estratégia social solidária e revolucionária. Atentamos a isso, pois nosso olhar precisa ser bastante crítico para não apagar personagens e passagens relevantes à história do Brasil, visto que, apesar de atualmente a capoeira ser considerada um dos maiores símbolos da identidade brasileira recebendo, nos últimos anos, importantes distinções nacionais e internacionais pela sua relevância como manifestação cultural, há, antes disso e até hoje, toda uma história de subjugação e discriminação, mas, principalmente, de luta e resistência.

Desde os navios negreiros… Desde as senzalas… Desde os quilombos… Desde a perseguição… Desde a criminalização (sim! Capoeira já foi crime no Brasil)… Desde a marginalização… Desde as favelas… Até hoje, a capoeira vem evoluindo. Não falamos aqui numa evolução no sentido do mito do progresso ideologicamente interessado em convencer que a história tem destino certo e glorioso, mas numa evolução que representa o entendimento de resistir, de desafiar as normas sociais e políticas estabelecidas e se adaptar aos contextos e às raras oportunidades proporcionadas. Um dos grandes mestres da capoeira, o Mestre Pastinha (sobre quem trataremos mais adiante), resumiu essa “evolução” nas seguintes palavras: capoeira é “mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”.

Esse breve texto se propõe a tratar exatamente dessa “evolução” da capoeira e apresentar de forma sucinta como se chegou aos três estilos de capoeira reconhecidos atualmente que, apesar das distinções, continuam compondo a complexa identidade de uma mesma manifestação cultural. Para esses estilos se atribuiu os sobrenomes: regional, angola e contemporânea. Desta forma, mesmo considerando a necessidade de não se apagar fatos e atores históricos, este texto não repercutirá para além do que ele se propõe. Para isso, com certeza, haverão outros textos e autores. Assim, sem pormenorizar as nuances e desafios enfrentados, o presente texto tenta lançar luz sobre a riqueza cultural e a capacidade adaptativa e transformadora dessa prática única que, há séculos, tece sua história no solo brasileiro.

Antes dos sobrenomes, o prenome. Aquela capoeira praticada pelos escravizados e ex-escravizados não tinha sobrenome. Era só capoeira mesmo. Ou melhor, em tupi-guarani, era ka’a (“mata”) e pûer (“que foi”), referindo-se aos campos abertos e sem vegetação nos quais essa manifestação era praticada. Contudo, para fins deste texto, àquela capoeira sem sobrenome, vamos chamar de capoeira ancestral. Estima-se que ela tenha se originado entre os séculos XVI e XVII. Ela se desenvolveu, principalmente, nos grandes centros portuários: Rio de Janeiro/RJ, Recife/PE e Salvador/BA. Por se ter poucos registros confiáveis dessa manifestação àquela época, pouco se pode especificar com exatidão sobre suas particularidades e desenvolvimento. Contudo, é possível conjecturar que a capoeira emergiu como resultado da aculturação, representando uma saída para expressar os anseios de liberdade da comunidade negra, que buscava resistir à opressão dos senhores inimigos.

Nesse contexto, a população predominantemente desarmada empregava seus próprios corpos como meio de defesa, incorporando elementos de danças, cantigas e movimentos oriundos das diversas culturas que estavam em contato no Brasil, claramente mais influenciadas pelas culturas africanas. A capoeira, assim, não apenas se configurou como uma forma de resistência física, mas também como uma expressão artística e cultural que transcendia as limitações impostas pela escravidão. Essa prática incorporava elementos de danças rituais e movimentos astutos, tornando-se um meio engenhoso de preservar a identidade, a solidariedade e a busca pela liberdade em meio às adversidades da época.

Já durante o século XIX, no Rio e no Recife, a capoeira foi duramente perseguida e praticamente extinta. Em Salvador, a repressão policial foi um pouco menos violenta e a capoeira sobreviveu. Lá surgiram as rodas de capoeira, local e tempo em que acontece o jogo que mistura a ludicidade das brincadeiras e a resistência contra o sistema opressor. É na roda de capoeira que se batizam os iniciantes, se formam e se consagram os grandes mestres, se transmitem e se reiteram práticas e valores afro-brasileiros. E foi nessas rodas de capoeira que aquela capoeira ancestral evoluiu para essa capoeira que conhecemos, mas ainda continuou sem sobrenome.

No século XX, ao final da década de 1920, ainda na Bahia, o senhor Manuel dos Reis Machado (1899 – 1974), conhecido como Mestre Bimba, entendeu que capoeira poderia ser mais combativa, no sentido de luta corporal mesmo, e misturou, àquilo que ele já dominava da capoeira, alguns movimentos do batuque (luta já extinta) e de outras artes marciais com que havia tido contato. Assim, Mestre Bimba criou a Luta Regional Baiana, que futuramente abarcaria o prenome “Capoeira” e o sobrenome “Regional”. Mestre Bimba criou uma metodologia de ensino e um sistema de graduações (lenços coloridos para cada nível de graduação). Modificou a formação dos instrumentos musicais (a charanga, de Bimba, é composta por um berimbau e dois pandeiros), criou variações dos toques de berimbau e acrescentou as palmas para que, ao seu entender, o ritmo fosse mais dinâmico. Também desafiou lutadores de outras modalidades (e não se soube de alguma ocasião em que tenha sido derrotado), fez apresentações e encantou muita gente (inclusive, o então presidente Getúlio Vargas). Em 1932, Mestre Bimba abriu a primeira academia de capoeira legalizada pelo governo baiano: o Centro de Cultura Física e Capoeira Regional.

Concomitantemente, também na Bahia, o senhor Vicente Ferreira Pastinha (1889 – 1981), conhecido como Mestre Pastinha, já renomado mestre de capoeira àquela época, enfocava em uma abordagem mais voltada para a preservação da ancestralidade da capoeira. Mestre Pastinha defendia a preservação das raízes africanas e a essência lúdica e ritualística desta manifestação. Claro que era impossível retomar aquela capoeira ancestral, pois os contextos históricos foram influenciando tanto a capoeira quanto os capoeiristas e isso refletiu nessa “evolução” que estamos tratando. Contudo, Mestre Pastinha chegou o mais próximo possível da capoeira ancestral. Resgatou e/ou manteve tanto a formação dos instrumentos (a bateria, de Pastinha, é formada por três berimbaus, dois pandeiros, agogô, reco-reco e atabaque) e os toques de berimbau quanto as movimentações geralmente mais próximas ao chão e gestuais da malícia, também conhecida como mandinga. Organizou uma metodologia de ensino baseada na manutenção das tradições. Se revelou um brilhante pensador e comunicador. Pastinha defendia a natureza não violenta do jogo e afirmava que a capoeira conferia dignidade, honradez e decência aos seus praticantes. Para diferenciar sua prática da prática proposta por Mestre Bimba, ele acrescentou ao seu estilo o sobrenome “Angola”. Em 1941, fundou a segunda escola de capoeira legalizada pelo governo baiano, o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), no Largo do Pelourinho.

Tanto Bimba quanto Pastinha morreram esquecidos pelas políticas públicas. Sem qualquer tipo de auxílio do governo baiano, Mestre Bimba buscou melhores condições de vida em Goiânia, mas acabou falecendo um ano depois, aos 73 anos, em virtude de um derrame cerebral. Mestre Pastinha, por sua vez, após ser expulso do casarão que era sede do CECA (que foi restaurado e deu lugar a um restaurante), entrou em depressão e teve uma forte piora de sua saúde física. Pastinha viveu seus últimos dias morando num quarto escuro e úmido, onde além da esposa, poucos foram os que o ajudaram. Sofreu dois derrames seguidos, que o deixaram cego e indefeso. Morreu aos 92 anos.

A capoeira da Bahia, ou seja, a capoeira de Pastinha e de Bimba, começou a se espalhar pelo Brasil. Importantes artistas conviveram com Mestre Bimba e, especialmente, com Mestre Pastinha. Como o caso de Jorge Amado, Mário Cravo e Carybé. Romances, poemas, esculturas, pinturas e músicas foram inspiradas pela capoeira baiana e tudo isso ajudou na sua popularização. Contudo, essa popularização para além do nordeste brasileiro se deu muito também pelo trabalho do senhor Washington Bruno da Silva (1925 – 1994), o Mestre Canjiquinha. Mestre Canjiquinha fez excursões ao sul do país com shows e exibições que ajudaram a divulgar a capoeira. Ele, inclusive, participou de dois importantes filmes nacionais: “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, e “Barravento”, de Glauber Rocha. Apesar de ele não ter criado exatamente um estilo novo, a importância do seu trabalho está especialmente na habilidade de resumir de forma concisa a herança deixada pelos mestres Bimba e Pastinha, abrindo, dessa maneira, o caminho para uma nova possibilidade.

Foi a partir da década de 1970, principalmente com os capoeiristas do Grupo Senzala, liderados pelos irmãos Rafael Flores Viana (1946- 2016) e Paulo Flores Viana (? – ?) (baianos que tinham como base o Rio de Janeiro, mas que buscavam aperfeiçoar fundamentos com a velha guarda da capoeiragem, em diversas visitas a Salvador), que essa possibilidade começou a tomar forma ao agregar aquilo que, inicialmente, era antagônico: a ludicidade e o ritual da capoeira angola e os movimentos e toques mais dinâmicos da capoeira regional. Além disso, trouxeram influências de outros esportes como a ginástica olímpica, por exemplo. Como já não era angola e nem regional, alguns apenas suprimiram o sobrenome e voltaram a chamar apenas pelo prenome “Capoeira”. Outros, por entenderem como um novo estilo híbrido mais desamarrado e flexível (mas, não por isso, menos compromissado) e ainda suscetível de intervenções criativas, atribuíram o sobrenome “Contemporânea”. Entre as características mais marcantes da capoeira contemporânea talvez destaquem-se os floreios acrobáticos, o uso de uniformes e o sistema de cordões de graduação, inspirado nas artes marciais orientais. Além disso, é importante ressaltar que a capoeira contemporânea é frequentemente vista como mais esportivizada, refletindo uma tendência em direção a uma abordagem mais formal e estruturada, organizada até, em alguns casos, em federações e confederação. Hoje, entre os seus principais representantes está o senhor José Tadeu Carneiro Cardoso (1955), conhecido como Mestre Camisa, do Grupo Abadá-Capoeira.

Contudo, alguns poucos, principalmente os mais puristas, ainda insistem em não admitir que exista esse terceiro estilo de se vivenciar a capoeira. Defendem que a capoeira contemporânea não foi formalmente instituída por algum mestre ou grupo, talvez por terem a dificuldade de entender que ela é de todos os capoeiristas e que continua sendo desenvolvida a cada novo movimento executado durante o jogo e que, justamente por isso, é contemporânea. Fato é que a capoeira contemporânea é aquela que mais cativou turistas. Inclusive, os turistas estrangeiros. E, assim, se espalhou pelo Brasil e pelo mundo, conquistando, cada vez mais, mais adeptos.

De qualquer forma, apesar dos diferentes sobrenomes, a intrincada identidade desta expressão cultural ultrapassa as distinções que lhe conferimos. Em essência, todas as abordagens para vivenciar a capoeira ainda se enquadram no prenome “Capoeira”. Há muito mais o que nos une, capoeiristas, do que o que nos separa. Essa unidade na diversidade reforça a capacidade única da capoeira de servir como uma expressão coletiva e unificadora de resistência cultural ao longo dos séculos, destacando-se como um símbolo duradouro da luta pela liberdade.

Por fim, tratando-se ainda da essência e dos fundamentos fica o convite à reflexão. Será que essa “evolução” da capoeira é uma expressão genuína da vivência e inovação de seus praticantes ou há uma influência externa que a direciona para atender a determinados interesses? Até que ponto a capoeira pode se associar ao mercado e à indústria cultural, se sua intenção inicial é revolucionar e subverter o sistema dominante? A mercantilização pode diluir a essência revolucionária da capoeira, transformando-a em um produto de consumo superficial? Estas são indagações fundamentais para preservar a integridade da capoeira como uma manifestação autêntica de resistência cultural e essas reflexões cabem tanto, por exemplo, ao se observar a recente expansão da capoeira para o exterior quanto, ainda por exemplo, ao se ponderar sobre a liberação das primeiras academias.

 


Gustavo Baptistella Leite da Silva é especialista em Gestão Escolar, Coordenador de Extensão do Campus Capivari do IFSP e Mestre de Capoeira do Grupo Expressão Paulista de Capoeira.

 

(FOTO DE CAPA: reprodução de obra do artista Carybé – extraído de https://acrilex.com.br/portfolio-item/carybe/)

 

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