A Encruzilhada de Chimoio, no coração de Moçambique

A Encruzilhada de Chimoio, no coração de Moçambique

A palavra Chimoio significa, em chiutè, coraçãozinho. A cidade de Chimoio, localizada na Província de Manica, na região central, no coração de Moçambique, pode ser um retrato de uma África mais profunda, onde coexistem as promessas ilusórias do Ocidente e o relicário das tradições tribais mais genuínas.

Não é possível falar sobre a África em um registro frio e sem emoção. O continente africano carrega, de muitas formas, as marcas da violência do processo colonial, que foi sendo reinventado ao longo dos últimos 500 anos. A fase atual desse perverso processo ainda se encontra em curso, com a invasão do discurso meritocrático e das igrejas neopentecostais. E o Brasil agora ocupa um papel central na perpetuação de uma percepção colonizada de mundo. Todas as representações de uma África idílica e ancestral chocam-se com a difusão e assimilação dos valores do Ocidente. Confesso que isso dói muito profundamente.

No território de Chimoio, como em toda Moçambique, a fé e a religião demarcam o cotidiano, imprimindo o compasso dos afazeres e das relações. O universo religioso não deixa de explicitar a encruzilhada cultural que se projeta diante de Moçambique. O complexo campo religioso moçambicano revela as mazelas culturais do projeto colonial, mas também evidencia a força de resistência das tradições tribais.

Na fotografia de Chimoio, destacam-se a Igreja Matriz, demarcando a presença da Confissão Católica, mas também a Mesquita, com seu minarete, sinalizando o Credo Muçulmano. Na interface de uma convivência pacífica entre cristãos e mulçumanos, desponta, mais recentemente, o cristianismo neopentecostal, com seus discursos inflamados, fazendo apologia à teologia da retribuição e prosperidade. Um povo tão profundamente místico e aberto à mensagem religiosa pode parecer dócil e de fácil colonização, no entanto, em um olhar mais atento, na dinâmica das relações culturais, a questão não é tão simples, na medida em que há múltiplos sinais de uma resistência simbólica.

Mesquita central de Chimoio

A identidade do povo moçambicano aparece em uma sociabilidade rica, profícua em línguas regionais e passa por uma profunda concepção religiosa e visão mágica de mundo. As línguas locais e a cosmovisão religiosa não deixam de demarcar uma dinâmica de profunda resistência cultural. No limite, a variedade de línguas faladas na região e a concepção religiosa tribal podem revelar a força e a persistência de uma rebeldia simbólica que não se dobra diante do projeto colonial.

A língua oficial de Moçambique é o português, mas todo moçambicano guarda o conhecimento da língua de seu grupo étnico, sua língua ancestral. Há uma diversidade muito ampla de línguas locais, parte expressiva delas da matriz Bantu, que não deixam de guardar certa similaridade. Na região mais ao sul de Moçambique fala-se a língua changana e a ronga. Na região central, fala-se principalmente, as línguas chiutè, chimanica, sena e chibarue. Já mais ao norte do país as línguas mais faladas são: chindau, macua e swuahili.

A cosmo concepção religiosa, fundada em memórias ancestrais, transmitidas pela força da oralidade, persiste como referência última e mais sagrada. No campo religioso, particularmente nas comunidades mais interioranas, a referência de fé continua sendo a manifestação mágica da força espiritual da ancestralidade, demarcando a concepção de um mundo encantado, governado pela força espiritual, Mudzimu (na língua chimanica). Mudzimu traz sua mensagem ao grupo por meio do Machai, aquele que recebe o espírito.

É preciso reconhecer, em uma perspectiva pós-colonial, na força da cultura, na ritualidade dos feitiços, no culto à ancestralidade, na prática religiosa, na simbologia da gestualidade cotidiana, na generosidade das relações e nas tradições tribais mais genuinas o lugar da humanidade, da origem, da espiritualidade, do encontro com nossa ancestralidade, nosso passado, nosso presente e nosso devir.

Há muito, muito para se aprender com a África!

 


Adelino Francisco de Oliveira é doutor em Filosofia, mestre em Ciências da Religião e professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba. 

 

(Fotos: do autor)

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