A ditadura contra nossos sonhos de cidadania

A ditadura contra nossos sonhos de cidadania

A ditadura empresarial-militar, eclodida a partir de 31 de março de 1964, já então distante há 60 anos, deixou um longo e profundo rastro de destruição social no país. Os militares brasileiros, colocando-se a serviço dos interesses do grande capital internacional e liderados pelo governo estadunidense, impuseram ao Brasil um violento e intenso processo de retrocesso social, econômico, cultural e político. O escopo ideológico, a apologia ao autoritarismo, produzido e amplamente divulgado no decurso de todo o período ditatorial, perdura e ainda assombra a representação social no país. Ainda para muitos brasileiros, em uma leitura distorcida e equivocada da realidade, os símbolos militares estão associados à honra, integridade, civismo, patriotismo e competência.

Quando criança, ainda sem muita compreensão política, pude viver na pele, dentro de casa, a violência arbitrária daquela ditadura militar. Era o finalzinho dos anos 70 e o regime já começava a dar sinais de enfraquecimento. Meu pai, Laurentino, operário que atuava no movimento sindical, acabou sendo preso, sem nenhum motivo mais plausível, e amargou mais de um ano como preso político, em um período já considerado como de abertura do regime, sob o governo do então general João Batista Figueiredo – o último dos ditadores – que fechou o ciclo de 21 nefastos anos de ditadura empresarial-militar.

Em um sentido mais amplo, como mensurar o mal produzido pelo regime militar ao país? Como compreender o impacto profissional e também psicológico daquela experiência do cárcere na existência de meu pai? Como analisar as consequências materiais e também espirituais para minha mãe, que se viu de repente sozinha, tendo que dar conta da sobrevivência material e da formação de seus seis filhos? Essa é uma memória que tem ficado nas sombras em nossa história familiar, da qual meu pai pouco fala. O Brasil também ainda não foi capaz de desvelar toda verdade sobre esse nefasto período de sua história recente, talvez por isso os militares apareçam, contraditoriamente, no imaginário nacional com tanto prestígio e empáfia.

A experiência de ir visitar o meu pai na prisão e aquele período de cárcere, que envolveu e alterou toda dinâmica familiar, somente passou a fazer um sentido mais profundo para mim alguns anos depois, quando fui tomando consciência de classe e passei a compreender o significado do período ditatorial e da luta política por liberdade. Minha mãe, Paula, fazia questão de nos levar com ela, para que conhecêssemos aquela realidade na qual meu pai estava submetido. Pelo que consta, meu pai não passou pela tortura, mas teve sua liberdade cerceada por um período relativamente longo. Quando deixou o cárcere, voltou de certa maneira diferente, mais silencioso e nunca mais militou no movimento sindical.

Lembro que, ainda jovem, fiz a leitura do livro “1968: O Ano que não Terminou,” de Zuenir Ventura. Foi impactante! Em seguida li, de Alfredo Sirkis, os livros “O Carbonário” e logo depois “Roleta Chilena.” De Frei Betto, li ainda a obra “Batismo de Sangue.” Leituras germinais, que me trouxeram um novo prisma sobre a conjuntura brasileira, a atuação sindical, resistência política no país e a dureza e difícil experiência do cárcere. Passei então a ler e pesquisar tudo sobre a ditadura militar. A leitura da obra “Brasil: Nunca Mais,” organizada por Dom Paulo Evaristo Arns, me fez chorar muito e também compreender o quanto a ditadura empresarial-militar impôs ao país uma lógica de medo, perseguição, tortura e morte – a banalidade do mal –, que não deixa de se fazer presente e perdurar, como herança perversa e modus operandi, na prática das polícias militares país adentro.

Ainda com Cardeal Arns, inclusive em conversas e orientações pastorais, aprendi o profundo valor da verdade. O projeto “Brasil: Nunca Mais,” que guardava a tarefa de trazer à luz do dia tudo que acontecia na escuridão dos porões da ditadura, já articulava o embrião do que seria depois a Comissão Nacional da Verdade, instaurada em 1999 pela presidente Dilma Rousseff. No Brasil a verdade sobre o que representou realmente a ditadura empresarial-militar nunca teve muito lugar. Mais recentemente, pude ouvir de perto e em viva-voz a professora Rosalina Santa Cruz compartilhando os horrores que sofreu no cárcere. Apesar da verdade histórica, em um movimento de revisionismo negacionista, a construção de um imaginário mítico dos militares como imaculados heróis da pátria sempre se impôs e trinfou. Quando a presidente Dilma Rousseff ousou instalar a Comissão Nacional da Verdade, com o intuito de passar a história de violação sistemática dos direitos humanos a limpo, foi traída por seu vice e sofreu um fraudulento processo de impeachment, culminando com a perda do cargo de Presidente da República, abrindo espaço político para a ascensão ao poder no país do extremismo neofascista de direita.

A história nos ensina que a brutal violência imposta mediante a força das armas, financiada por um empresariado inescrupuloso, sem nenhuma solidariedade social e vassalo do grande capital internacional, não pode suplantar nossos melhores sonhos de uma sociedade livre, democrática e plena em direitos de cidadania. É preciso agora revisitar a história, compor uma perene comissão da verdade, conhecer em detalhes os horrores impostos pela ditadura empresarial-militar e construir estratégias políticas para que esse mal nunca mais volte a acontecer em nosso país. A mobilização em torno de um vasto processo social de educação popular para a cidadania política é nossa melhor e única resposta preventiva contra todas as ameaças de tirania.


Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba. Doutor em Filosofia e mestre em Ciências da Religião.

 

2 thoughts on “A ditadura contra nossos sonhos de cidadania

  1. Uma análise que deveria proporcionar uma revisão geral do papel militar no país. É muito violento este sufoco da verdade. A meu ver, nossas FFAA ganhariam se assumissem a responsabilidade pelos enormes erros cometidos. No atual contexto, seu prestígio está irremediavelmente comprometido.

  2. Nos 21 longos anos de duração do golpe de Estado que suprimiu a Democracia no Brasil, o Estado brasileiros prendeu, torturou, assassinou, exilou, “desapareceu” e baniu compatriotas que lutavam em defesa da democracia. Nenhum assassino, torturador e estuprador foi punido.
    A anistia conquistada após ampla mobilização popular isenta os torturadores e assassinos dos prisioneiros políticos de qualquer punição. É necessário que isso seja relembrado e revisto, para que possamos neutralizar o golpismo continuado das forças conservadoras no Brasil.

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