“De nada valem as ideias sem homens que possam pô-las em prática.”
– Karl Marx.
Começar um editorial valendo-se de uma epígrafe de Karl Marx pode parecer, hoje, algo até comum ou uma escolha meramente ocasional. No entanto, há 50 anos, citar Marx ou qualquer outro filósofo, escritor ou pensador dito “comunista” garantiria ao citador o direito a uma passagem de ida (quase sempre sem volta) às confortabilíssimas instalações dos porões dos órgãos repressores dos militares – empenhados em varrer o “mal” comunista que, ora vejam, ameaçava a soberania do Brasil. Quase uma grande afronta, citar Marx – mesmo que num editorial corriqueiro como este, pronto para ser lido apenas por uma meia dúzia de pessoas – assume, nos dias de hoje, e sob qualquer forma, o caráter de um imenso (de um enorme) privilégio. Não que sejamos aqui neste espaço tão marxistas assim – certamente não o somos –, mas valer-se de uma epígrafe marxista, na data que agora se rememora, faz estalar na boca o gosto delicioso da liberdade e o sabor mais que aprazível do direito à expressão (algo como fazer vibrar o berro: “o texto é nosso e citamos quem quisermos, oras!”).
Deixando de lado questões ideológicas, partidárias e tendenciosas, o ato de relembrar os 50 anos do golpe militar que lançou o país em um de seus mais cruéis períodos precisa – para ser verdadeiramente válido – ser pleno de um sentimento de devoção que seja capaz de – com sinceridade – homenagear o sem-fim de vítimas que, sob a mira de seus algozes, padeceram nas mãos daqueles que paradoxalmente diziam (e, de fato, acreditavam) estar defendendo a nação. Centenas de vítimas fatais, centenas de desaparecidos. Milhares de presos e de torturados. A esses devemos nossa eterna gratidão. A eles devemos nosso pensamento e nossas melhores vibrações neste momento em que se presentifica com mais força em nosso país a memória de seus anos de chumbo. Às vítimas da ditadura – àqueles que lutaram para que, sem medo de retaliações, possamos hoje expressar nossa opinião dentro de um estado que se quer democrático e de direito – à nossa mais que sincera homenagem. A eles, homens e mulheres que puseram a ideia em ação, à delícia da citação de Karl Marx que abre este texto.
Abaixo as ditaduras de todas as espécies e de todos os tipos. Abaixo as ditaduras de esquerda. Abaixo as ditaduras de direita. Abaixo as ditaduras religiosas. Abaixo a ditadura da moda. Abaixo a ditadura da ignorância, da falta de estudo. Abaixo a ditadura da falta de oportunidade para o povo. Abaixo a ditadura dos corruptos, dos ladrões engravatados. Abaixo a ditadura do dinheiro. Abaixo a ditadura das drogas, do tráfico, da violência. Abaixo a ditadura do descaso, da falta de saúde pública, da morte cruel e sem atendimento nos hospitais. Abaixo a ditadura da indústria cultural, dos meios de comunicação (tendenciosos e falsos). Abaixo a ditadura da pobreza, da miséria. Abaixo a ditadura do jeitinho brasileiro. Abaixo a ditadura do olho por olho, dente por dente. Abaixo a ditadura do preconceito. Fora com os que faltam ao respeito aos direitos de homens, mulheres e animais. Fora com os que exploram os mais fracos, com os que roubam, amedrontam e ameaçam. Fora com os que, passados já 50 anos do golpe militar no Brasil, ainda acreditam na dor e na tortura como método.
Ao povo o direito de – bem ou mal – escolher seus governantes. Ao ser humano o direito de expressar sua opinião e de ser responsabilizado legalmente por ela – é claro! Que os 50 anos do golpe sejam assim, mais do que memória, fomentadores de um novo tempo: tempo de mudanças e de novas perspectivas, tempo de renovar a crença no direito e na justiça, tempo de renovar a crença em nossa democracia – mesmo que seja ela ainda tão fraca e tão doentinha. Que os 50 anos do golpe marquem, por fim, e definitivamente, a impossibilidade de, num refluxo da história, nos vermos novamente nas mãos daqueles que outrora roubaram nossa liberdade e impuseram ao país um estado de exceção. Que a memória do golpe nos impulsione à democracia, sempre. E que a dor e o sofrimento da nação sejam motes eternos para que a luta por melhores condições sociais seja também um exercício constante de todo brasileiro.
A democracia. Sempre!