Analisar essas formas de práticas do dizer-a-verdade sobre si mesmo relacionando-as, de certo modo a um eixo central que é, evidentemente, o princípio socrático do “conhece a ti mesmo”.
Michel Foucault
O contemporâneo tem sido muitas vezes definido como a sociedade dos simulacros e das simulações. O próprio universo virtual possibilita – de certo modo até instiga, fomenta e motiva – à criação de uma pseudo realidade, a expressar vontades e representação. Livre de qualquer compromisso ou mesmo preocupação com a noção de essencialidade, a proposta de uma verdade incólume e transparente se perdeu e foi esquecida diante das múltiplas representações e possibilidades de uma realidade forjada, porém bem mais conveniente. A perspectiva do relativismo, da superficialidade e a própria lógica do consumo acaba por reforçar e ressaltar um mundo de ilusão, a comportar apenas o que pode se revelar agradável, fluido, prazeroso. Ideias, pensamentos, corpos podem não passar de meras representações, estrategicamente e ardilosamente moldadas para impactar, produzindo encanto e sedução. O fundamental parece restringir-se e esgotar-se na imagem apresentada, midiaticamente veiculada.
Claramente a questão da verdade não se compõe como preocupação central e relevante no contexto da pós-modernidade. Neste esteio cultural, não há espaço para o dizer a verdade, nem sobre si mesmo nem sobre o outro e o mundo. Sob o signo do filme “O mentiroso” – 1997, com Jim Carrey –, a verdade pode significar algo profundamente incomodo e até inconveniente, consubstanciando um ambiente de relações tomadas e tecidas sob a égide da bajulação, da fraude, do oportunismo, do elogio fácil, da falsidade, da hipocrisia. Em diversos contextos, a verdade pode representar perder relacionamentos, prestígio, oportunidades de negócios.
Em discrepância a tal realidade cultural, deparamo-nos e encontramos, no contexto da Antiguidade, em período clássico grego, a perspectiva da parresia, a compor a dinâmica de se dizer a verdade sobre si. A parresia, de maneira geral, consistia e contemplava a exigência de se falar francamente, compondo-se como a modalidade de se dizer a verdade sobre si mesmo. A parresia insere-se e se destaca dentro das práticas gregas conhecidas como o cuidado de si, a vislumbrarem e remeterem sempre à condição do equilíbrio e do comedimento. No mundo grego, a dimensão do cuidado de si alcançava e contemplava diversos aspectos da vida – dietas e regras alimentares, a vivência do ócio, o uso dos prazeres, práticas de ginástica e esporte, hábitos de leitura, a própria parresia etc. Assim, a dimensão da prática da parresia descortina-se como fundamental virtude, a se definir como exigência ética a pautar o cotidiano das relações.
Outro aspecto interessante e sugestivo é que, no contexto do mundo grego, a prática da parresia deveria ser realizada diante de interlocutores – ou ao menos um interlocutor –, que assumem a condição de ouvintes, pois a verdade deveria ser dita e pronunciada, não em âmbito privado, mas com alcance e repercussão pública. Assim, a parresia, de certo modo, antecede qualquer forma institucionalizada de se explicitar e expor a verdade sobre si mesmo. A confissão pastoral – ensejada no contexto da Igreja no medievo –, a dinâmica do divã ou mesmo outros processos de análise e terapia seriam desdobramentos históricos da prática da Antiguidade do dizer a verdade sobre si mesmo. A grande distinção articula-se no fato de que no contemporâneo vislumbra-se e busca-se uma prática do dizer a verdade sem exposição nem riscos – ao menos no campo político. Tanto o confessionário, espaço sagrado, quanto o consultório clínico, lugar do sigilo profissional, arquitetam-se para que a verdade não ecoe para além de uma dimensão intimista, pessoal.
Alcançam destaque e evidência algumas dimensões fundamentais, a consubstanciarem a prática de se falar de maneira franca, de se dizer a verdade sobre si mesmo. Na Grécia Clássica, a parresia contempla também o dizer tudo que seja verdadeiro, não ocultando nada da verdade, dizendo a verdade de maneira aberta e sem máscaras, sem subterfúgios. A parresia abarca ainda a perspectiva da convicção pessoal. A verdade explicitada deve ser expressão e explicitar aquilo que se pensa. Não é qualquer verdade, pronunciada de maneira aleatória. É preciso fundamentalmente que tal verdade seja representação de íntimas convicções. Assim, a prática da parresia implica riscos, na medida em que o ato de dizer a verdade não se restringe e se prende a elogios e frivolidades, mas alcança uma condição de essencialidade. Por conseguinte, a parresia, exige, sobretudo, coragem. A suma coragem de dizer a verdade sobre si mesmo, toda verdade, decorrente das mais profundas convicções, apresentando-se, expondo-se, desnudando-se diante do outro e do mundo, colocando a própria vida em risco.
Ressalta-se e sobressai ainda um aspecto de extrema relevância da parresia: a dimensão da formação ética do indivíduo. A prática do dizer a verdade contempla a formação de indivíduos imbuídos e tomados por uma determinada maneira de ser e viver, por um preciso modo de fazer, por certa forma de se comportar e agir. Neste caso, a parresia descortina-se como um elemento de singular importância no processo formativo. A questão consiste em se educar para a verdade em um duplo escopo: a verdade de si mesmo – aos moldes do “conheça-te a ti mesmo”, de Sócrates – e a verdade no âmbito das relações com o outro, com a sociedade, compondo e alcançando a dimensão política. A parresia assume a função de dar o tom e direcionamento ético dos indivíduos. Dizer a verdade não se restringe e se compõe como uma mera possibilidade e sim como uma condição, a definir condutas individuais e estruturar o tecido social.
Em um contexto de próspero e pernicioso relativismo – expressão ampla, que procura abarcar a ausência de referenciais únicos – torna-se necessário ainda discernir em torno da definição da verdade. Claramente o relativismo problematiza e questiona ao colocar em suspensão a noção de que há uma verdade última e absoluta, compondo um tempo de múltiplas verdades. Talvez seja oportuno revindicar e resgatar, como herança cultural, a exigência da parresia. Livre de imposições e posturas dogmáticas é preciso se assumir, com coragem inquebrantável, os riscos da verdade. Tanto a verdade do que somos, no mais profundo de cada ser, como a verdade das relações em sociedade. Sem abrir mão das dimensões de sensibilidade e gentileza, a lógica da verdade possibilita a construção de relações transparentes, autênticas, desprovidas de intenções veladas, escusas, impronunciáveis. Condição alcançada apenas por aqueles que assumem, com independência e liberdade, a coragem da verdade
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Adelino de Oliveira é professor de Ética e Filosofia na Faculdade Salesiana Dom Bosco de Piracicaba
Parabéns!
O professor Adelino sempre perocupado com o conhecimento e com os problemas da sociedade. Trazer esta reflexão é uma possibilidade única de buscar internamente uma autoanalise de como estamos em relação a verdade.
Parabéns a toda equipe.
Atenção leitores do Diário. Os autores dos 2 melhores comentários sobre o texto do professor Adelino receberão de presente o livro “A Arte de Lidar com Pessoas Difícies.” Boa leitura e bons comentários!
Equipe Diário do Engenho
Estimado Alexandre,
Sugestiva e interessante iniciativa do Diário do Engenho… De fato, não há presente melhor… Vou também deixar meu comentário… (risos).
Esteja bem!
Estimado Prof. José Demarco,
Agradeço pela qualificada interlocução. O tema é mesmo relevante e oportuno, especialmente em um momento delicado e não menos fundamental de escolha via urnas… O tema da verdade não pode ficar ausente do debate político – campo que o professor conhece tão bem.
Esteja bem!
Caro Prof. Adelino, muito boa reflexão. De fato, vivemos uma inversão de valores. Tudo é muito rápido, descartável e nada preenche a necessidade fundamental do ser humano, ser feliz! É para isso que nascemos.
Eu me pergunto: – O que é a verdade? Existe uma única verdade? Uma “verdade incólume e transparente”? O que sabemos de nós e do outro é a verdade? Neste momento me lembro do apóstolo PAULO, hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como sou conhecido eu mesmo.Coríntios 13 12.
Prezada Sra. Helena Andrade,
Agradeço por sua interlocução. A questão da verdade é por demais densa. Considero, no entanto, que a perspectiva relativista muitas vezes fere a própria lógica. Mas é preciso respeitar todas as vertentes. Só não é possível dialogar com posturas intolerantes.
Esteja bem!
Oi, Adelino! Seu texto me fez lembrar de um filme sobre o qual escrevi recentemente. Chama-se “The Final Cut” e saiu no Brasil como “Violação de Privacidade”. De certa maneira, ele aborda uma das diversas formas de reescrever o passado. Se, por acaso, você ainda não viu, recomendo. Não é aquele da Sharon Stone, pena, né? 🙂 Mas tem diálogos ótimos. Uma fala marcante é: “Eu não vou ficar parado enquanto o passado é reescrito em nome de lembranças agradáveis.
Parabéns pelo texto excelente! Abraço!
Estimada Carla,
Conheço o filme “Violação de Privacidade”, mas infelizmente não tive o prazer de ler o seu texto. Em todo caso, penso ser fundamental reler o passado, para projetar de maneira livre o presente e o futuro.
Esteja bem!
OI Adelino. Ao ler ser artigo resgato um dito popular que meu saudoso pai sempre usava: “Temos apenas um para e duas verdades”. Assim, fica difícil saber qual é a verdade, não é? Pois são meus olhos que determinarão o que quero enxergar e meus valores aquilo que vou multiplicar… Apresento no corolário de reflexões uma frase de Hesse, em sua obra “Demian”: “Em cada um de nós crucifica-se um redentor”… De quantas verdades temos que abrir mão para que o outro possa existir? Forte Abraço!
Estimado Prof. Elder,
Agradeço pela elevada e qualificada interlocução… Talvez eu esteja mais próximo no momento de uma tradição de pensamento que aponta para a perspectiva de uma verdade universal e absoluta. Sei que tal concepção pode assumir uma conotação assustadora nos dias de hoje… Mas o fato é que não estou convencido acerca desse tal relativismo onde reina tranquilo as incertezas…
Esteja bem!
Olá Adelino.
As suas colocações são cortantes, como faca afiada. Corte doloroso, e quando a dor é vergonhosa – pois fomos descuidados e nos deixamos cortar – não nos exporemos. O mundo está ferido pela sedução da frivolidade, do descompromisso, do divertimento, da presença virtual que se propõe a suprir o vácuo imenso que vai se formando pela ausência dos olhos nos olhos, do reconhecimento da voz há tempos não ouvida.
Lembro de uma citação ouvida do professor numa aula de filosofia, cujo autor não saberia indicar: “Deus deu ao homem palavras para esconder seus sentimentos.” O exercício da verdade, da sua verdade, independente do que represente para os outros, muitas vezes exige, como você afirma, “coragem inquebrantável” para assumir os riscos de expô-la. Sem dúvida, haverá aquelas verdades que devem ser compartilhadas, porque não dizem respeito apenas aos conflitos e visões pessoais, mas a todos os conceitos, valores, desejos, propostas, conhecimentos, que conduzem ao exercício da verdade “no âmbito das relações com o outro, com a sociedade”, como condição para a nossa formação de pessoas, de pais, esposos, amigos, cidadãos.
Não sei bem o sentido mais amplo do relativismo, mas não me agrada a idéia de algo que não se apóia em referências concretas e sustentáveis como norte para o desenvolvimento da sociedade.
Parabéns, e grande abraço.
João Batista
Estimado João Batista,
Agradeço pela partilha sincera e profunda. Muito me alegra sua reflexão, que vai muito além de tudo que escrevi. O relativismo nos lança em um mar de incertezas. As convicções que pareciam mais densas e inabaláveis desmancham-se insignificantes, tornando-se pó.
Essa é a realidade que temos, precisamos nos mover nela e compor respostas a altura, mesmo que provisórias…
Esteja bem!
Olá Adelino…
Muito difícil é conviver nessa sociedade, quando se tem o sentimento de que ser verdadeiro é moeda sem valor e sem reciprossidade, quando se tem a consciência de que muito dos absurdos que acontecem hoje é o resultado de uma sociedade, na grande maioria, feita por fracos e covardes. tudo parece uma grande piada rídicula e sem graça, no entanto é uma realidade triste e vergonhosa.
Contudo, quando a busca por valores verdadeiros se torna muitas vezes difícil e dolorasa frente aos obstáculos dessa contemporaneidade…sua refleção me dâ fôlego e ânimo para manter minha crença de que é ainda possível assumir uma postura diferente da maioria e manter-se íntegro consigo e com o mundo louco a sua volta.
Obrigada pela boa leitura!
Grande abraço!
Prezada Geisa Duarte,
Agradeço pela possibilidade de interlocução. A busca por valores autênticos é mesmo árdua. Mas, de qualquer forma, é preciso buscá-los.
Esteja bem!
Caro Adelino!
Em tempos de massificação no contemporâneo tais palavras nós remetem a reflexão e a autoanalise para realmente entendermos o que é a verdade e o que é a simulação, muitas vezes deixamos nos levar pelas tentações mundamas e a busca do mais, ter mais e esquemos que a verdade nos leva a ser mais. Mais uma vez um texto denso com muita propriedade, parabéns…
Um grande abraço.
Luiz Edinaldo
Prezado Luiz Edinaldo,
Novamente agradeço pela qualificada interlocução. Você é sempre crítico e ponderado em suas considerações.
Esteja bem!
Oi Adelino, quanto tempo ein… Fui sua aluna até ano passado!!
Sempre leio seus textos no Jornal de Piracicaba… Vou refletir um pouco sobre esse partindo da conclusão: “Talvez seja oportuno revindicar e resgatar, como herança cultural, a exigência da parresia. Livre de imposições e posturas dogmáticas é preciso se assumir, com coragem inquebrantável, os riscos da verdade. Tanto a verdade do que somos, no mais profundo de cada ser, como a verdade das relações em sociedade. Sem abrir mão das dimensões de sensibilidade e gentileza, a lógica da verdade possibilita a construção de relações transparentes, autênticas, desprovidas de intenções veladas, escusas, impronunciáveis. Condição alcançada apenas por aqueles que assumem, com independência e liberdade, a coragem da verdade”
Agora estou estudando em Marília, e ao me deparar com a nova vida que escolhi, estudando longe da minha cidade e dos meus pais, percebi o quanto as pessoas estão cada vez mais superficiais e individualista… É tão fácil ver jovens bebendo e se drogando, e ao mesmo tempo buscando um corpo perfeito, malhando sempre na academia. Não são todos, mas uma grande parte. É difícil encontrar amigos de verdade, que vão te estender a mão e ajudar quando mais precisar. Muito mais fácil encontrar pessoas competitivas, que se preciso, vão passar por cima de você com um trator, sem pensar nas pessoas como seres humanos, que merecem respeito, ter seus direitos respeitados, levando uma vida em que se sentem bem, com saúde, mantendo relações saudáveis.
Apesar disso tudo, eu continuo com muita fé e coragem no meu caminho, no curso que escolhi e estou amando: fisioterapia. Escolher ser um profisssional da saúde, é levantar uma bandeira que defende a vida, e viver bem, com saúde, que na minha opinião é se sentir bem, tendo relações saudáveis, cuidando da família e dos amigos, se dedicando ao trabalho, fazendo atividades fisicas,tendo uma vida espiritual… E pra isso, sem dúvidas… é preciso de MUITA CORAGEM!!!
Saudades Adelino
Grande abraço
Juliana =)
Estimada Juliana,
Que bom receber notícias suas… Suas contribuições em aula fazem falta. Obrigado pela interlocução de qualidade. Aliás, vejo que você não esmoreceu em suas análises críticas. Parabéns! De fato, o individualismo exacerbado tem impossibilitado a construção de relações verdadeiras. É preciso coragem para se portar de maneira autêntica e crítica. Coragem que você sempre demonstrou ter. Força e perseverança na nova etapa de sua formação. Tendo oportunidade, apareça para um café.
Esteja bem!
Com estima.