Roland Barthes (1915-1980) é um daqueles escritores que eu leio com dificuldade, mas sempre com prazer, muito prazer. Funciona assim: não alcanço toda a complexidade dos raciocínios, argumentos e conclusões dele, porém sinto sua inteligência (sempre combinada com delicada sensibilidade) fluir para fora das páginas, como fagulhas que se espalham no ar, vindas de um fogo vigoroso, no meio da noite – faíscas que iluminam a mente que aprecia labaredas. A cada parágrafo, elementos que levam a devanear, diante do mundo e dos seres e coisas que nele se movem.
De seu Sobre Racine (São Paulo: Martins Fontes, 2008, 211 p.) veio a inspiração para a expressão “biografia do mundo”, como sinônimo de História. Não é disso que se trata nos ensaios do livro, que é uma densa e iluminadora crítica à produção do dramaturgo francês do século XVII, além de uma reflexão sobre a própria prática e sobre os fundamentos da crítica literária. Mas é assim que acontece quando se lê grandes autores: viaja-se.
Uma passagem iluminadora, dentre tantas, foi esta: “Em suma, para o herói raciniano, o mundo é uma opinião pública, ao mesmo tempo terror e álibi.” (p. 44), antecedida por outra: “…cada um só é tocado pelo outro [no singular] – ou seja, por si mesmo. (…) A cegueira do herói raciniano em relação aos outros [no plural] é quase maníaca: tudo no mundo, parece vir procurá-lo pessoalmente, tudo se deforma para ser apenas um alimento narcísico…” (p. 43).
Barthes está argumentando que na tragédia raciniana o que há são pares de indivíduos, profundamente mergulhados em sua relação (de amor e ódio, de poder e submissão), tudo o mais e todos os outros servindo apenas de moldura ou recipiente (a que se presta pouca atenção) para as decisões, ações e consequências do par que se agita e se contorce. Ou seja, são duas biografias (um/a e outro/a) se entrelaçando, para a dor e o prazer, deixando de lado a História (todos os outros), a biografia coletiva, a biografia do Mundo. Seres soltos no universo, alicerçados em si mesmos (o barão de Münchhausen, erguendo-se do solo no ato de puxar-se pelos próprios cabelos).
Talvez seja esta a tragédia do individualismo exacerbado, que segue se exacerbando desde a Modernidade: o indivíduo sente-se maior e acima da coletividade, bastando-lhe, para seguir em frente, meia dúzia de outros, para que lhe sirvam de espelho confirmador, ainda que lhe devolvam a imagem um tanto distorcida. Prepotente solidão atroz.
Imagine-se alguém que estabeleça uma relação que pretenda duradoura com outro e, apesar de a relação avançar no tempo, escapar-lhe a biografia deste outro, escorrendo-lhe por entre os dedos. A tragédia é previsível, “favas contadas”. Por que seria diferente no caso de todos que se relacionam com o mundo, mergulhados na História, desconhecendo seu evoluir e suas sedimentações?
O individualismo exacerbado, combinado com a busca incessante de prazer e conforto acima de tudo, conduz a uma atitude de desinteresse pela História, ignorando-se que ninguém deixa de ser resultado dela, grão de areia na praia que se movimenta ao sabor das ondas do mar. É muito diferente a condição, e são distintos os comportamentos e as atitudes perceptíveis entre os que veem a História (o mundo dos homens) como mera “opinião pública” (que aprova-os ou reprova-os, nisso esgotando sua “finalidade”) e os que a percebem como o caldo, tantas vezes quente e agitado, em que todos estão, inexoravelmente, mergulhados. Os indiferentes ao coletivo, os que ignoram a biografia do Mundo, contentando-se com a própria, não fazem ideia do quanto de si decorre de desdobramentos de todo o processo civilizatório, de que são ínfima parte.
Para eles, quando ao acaso os descobrem, Ramsés II e Cleópatra, Hamurabi e Sargão, Ciro e Dario, Temístocles, Alexandre Magno, Gregório XIII, Napoleão, Hitler são apenas iguais, embora maiores, que viveram em tempos remotos. Dessa forma, jamais são capazes de saber quem (ou quão pouco) são, pois ninguém é, simplesmente por ser, em si. Cada um de nós é História: uma biografia individual emaranhada na biografia coletiva, na biografia do Mundo, sendo dela indissociável, perceba-se ou não. Ignorar isso é uma tragédia. Então, é doloroso concordar com Hegel quando ele diz que: “O que a história ensina é que os governos e as pessoas nunca aprendem com a história.” Embora ele se divertisse bastante, ao que parece, com o espetáculo do mundo.
Valdemir Pires é economista e escritor.