Passado. Nem tanto. Que o sol ainda é o mesmo e ilumina o meu sonho em cada canto. Sonho? Nem tanto. Lembranças. Criação viva. Porque toda evocação é feita de ilusão, memória ativa, que imagina e inventa e ficciona o que, em si e na mente, parece ser a realidade viva. Mas não é. É sábado. Faz um quase frio em que fio tempos idos. Sem tristezas. Porque recordar também é uma forma de re-amar o que já se amou no tempo do acontecido.
Meu pão de todas as manhãs, por exemplo, foi amassado ontem, anteontem. Passo o tempo com café. A mesa posta, os jornais do dia não são mais novos do que se esperava ou se queria. Meus gestos, meus lamentos, minhas alegrias. O olhar e o projetar da semana que se abre, o descansar dos ossos combalidos nas noites de sexta-feira, os sons, os sentimentos, os sentidos nasceram todos ontem, feito promessa certeira dos agora quase esquecidos.
No espelho, entendi a predição que define a força daquele que abre os caminhos: “sou ontem o que fui amanhã, Exu virado na noite, açoite cru na pela do tempo nu”. No espelho entendi de novo, pensando o que de mim veria e diria ela – e quem cantou diferente mentiu: porque o tempo passou na janela e só Carolina é que viu. Me lembro, como não poderia deixar de ser, de Cecília – e, saindo da frente do espelho, respondo ao meu rosto redondo, deixando sem medo que o tempo me cace: Cecília, em nenhum espelho ficou perdida a minha face.
Porque no próximo dia ainda serei o presente. As alegrias de minha infância, as tardes de aniversário, os bolos de confeiteiro, salgadinhos fritos, refrigerantes, brigadeiros, o mês de junho fechando-se em festas, as férias sempre no porvir. Pena que não posso mentir. Não há tristezas. Prometo. Afastado do antes, sou – e somos – o passado a seguir. E sigo. E seguimos. Todos. Alegria vã acertando o que já passou com a pedra atirada amanhã.
21 de junho. Minha mãe faria (ou faz) anos. Há casa cheia, há sanduíches de patê de pimentão e tomate esperando na geladeira. Há no agora o depois que virou ontem: movimento sem fim que – mesmo solitário – celebra o existir dos que antes, passados, hoje (e sempre) são o que (sou e) habita em mim. Rangem os assoalhos e suas frestas. Não há tristezas – ou quase. Abre-se a casa outra vez. Porque no lembrar é (ou precisa ser) eternamente dia de festa.
Alexandre Bragion é editor do DE e autor do livro “Casa Burguesa Sem Chave”.