Sinal tocado, a criançada entrou na grita – farejando no ar o rastro do bonecão do Papai Noel que deveria estar onde não estava mais. Ué? Ués? Cadês? A molecada coçava a cabeça procurando o Bom Velhinho que no fim da tarde do dia anterior havia sido, com a devida festa, depositado em seu trono adornado com algodão e cola quente. “Roubaram, tia!” – e um quase choro coletivo se fez. “Roubaram nada! Que a escola fica trancada à noite” – disse a tia em resposta quase automática, fingindo controle. “E como é que ele sumiu?” – e a tia pensava em silêncio, natalina sem palavra nem noite feliz. “Mistérios do Natal” – inventou depois, para ganhar tempo – “já, já ele volta”. E uma CPI do Noel se formou nos corredores.
Investigação feita, eis que Papai Noel foi localizado – solene e pomposo – dentro do banheiro dos meninos, sentado que solitário ao vaso sanitário. A criançada quase que se borrou de medo. “Mistérios do Natal né, tia?” – perguntavam. “Nada! Alguém botou ele aí, por engano” – saiu a tia com essa, meio dando de zagueira em final de campeonato. “Mas a escola não fica fechada à noite, tia” – relembraram as crianças, caras de cruz-credo. “Chega de papo furado” – sentenciou a mestra para por fim a história que ela também não entendia. “Vamos colocá-lo de volta lá no trono que a gente fez para ele”. E Papai, ao que parece meio que contra sua própria vontade, voltou ao púlpito primeiro.
Papai. Não que fosse de todo feio. Era um Papai Noel bem desses com cara de Papai Noel de escola fundamental – feito com muito carinho, com muito amor, com retalhos doados por uma escola de samba e o tanto de espuma que se conseguiu arrancar do sofá descartado na lixeira. Também não era lá um boneco, como se poderá dizer, exatamente obeso. Aquele andava até que magro por demais, brasileiro por demais, meio torto, de olhos vermelhos feitos de batom borrado numa cartolina branca fixada na cabeça. Mas era Papai Noel. E era natal. E tudo estaria até que muito bem não fosse ele ter amanhecido outra vez no banheiro – sentado em trono mundano.
A criançada pegou horror. Numa transformação afetiva radical, Papai ganhou ares de fantasma da escola – que era confessional, de metódica natureza cristã, diga-se de passagem. Os pequenos não conseguiam mais nem olhar para Papai. As crianças mais velhas passavam correndo pelo corredor onde o bonecão levava o dia a funcionar como um espantalho infantil. Em segredo, até mesmo as professoras lhe esconjuravam nomes feios, adjetivos impróprios e punham as mãos sobre o coração quando precisavam ficar próximas à entrada da escola, onde o pobre insistentemente era recolocado.
Na terceira manhã, foi a vez de a diretora chegar mais cedo para ver se encontrava Papai em lugar certo – antes de as crianças chegarem. “Mistérios do Natal” – disse ela a si mesma ao ver que o velhinho de espuma dormia outra vez no vaso sanitário, dentro do banheiro dos meninos. Num lapso, a diretora esqueceu-se de Freud e do estudo que fizera no curso de psicologia sobre bonecos autômatos e o medo que eles exercem em nós por serem estranhamente tão familiares. Esqueceu-se também da física que aprendeu no ensino médio, da impossibilidade de seres inanimados ganharem vida e – por fim – vacilou também na fé. Sem ser católica, fez o sinal da cruz ante a figura tronxa de Papai Noel sentado na privada, com a cabeça recostada à parede como um bêbado.
“Mistérios do Natal” – repetia a criançada ao dar conta de que, felizmente, Papai Noel e seu trono sumiram de uma vez por todas da escola. Ninguém quis perguntar à diretora por que é que ela havia mandado desmontar o cenário natalino. Ninguém também se interessou pelo que fora feito do Papai Noel, desaparecido no para sempre de dezembro. “Mistérios do Natal” – dizia-se pela escola, minimizando o medo que a lembrança daquele Bom Velhinho agourento e suas noites solitárias no sanitário masculino provocavam.
“Seo Cabral,” vigia noturno do prédio central – que em sigilo passava por ali de madrugada para puxar uma soneca rápida – foi quem mais se alegrou com o sumiço de Papai. Pela primeira vez naqueles dias ele não iria ter que, por medo, esconder o boneco no banheiro dos meninos para poder dormir, sem receios nem sustos, recostado a uma cadeira no corredor de entrada da escola.
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.
Crônica publicada também em “A Tribuna Piracicabana” deste sábado – 07 de dezembro de 2024.