Tenho em minha biblioteca – organizada especialmente para que sirva a mim e não eventualmente a terceiros – um item que denomino “livros preferidos/especiais”. Hoje, são cerca de 50 títulos que, vez ou outra, quando sinto que preciso encontrar mais ânimo no cotidiano, retomo a releitura. E aí vem a surpresa: nem sempre eles me parecem ainda tão especiais, mas sempre reajo de uma forma diferente a esse conteúdo. Não mudaram eles, mudei eu, mas é como se ficassem ali, à espreita, dizendo que relê-los poderá sempre acrescentar algo mais, já que um dia mexeram tanto comigo a ponto de fazerem parte deste grupo. (Apenas para os mais curiosos, alguns dos títulos que ali estão: “O livro dos abraços”, de Eduardo Galeano; “Senhores do orvalho”, de Jacques Roumain; “Inshallah”, de Oriana Fallaci; “A polícia da memória”, de Yoko Ogawa; “Não falei”, de Beatriz Bracher”; “O bandido que todos procuramos”, de Le thi diem Thuy; “O silêncio do delator”, de José Nêumane, entre tantos outros, e o mais recentemente incorporado “Vida, velhice e morte de uma mulher do povo”, de Didier Eribon).
Mas por que escrevo isso? Para voltar às reflexões sobre leituras, tema abordado nos três últimos artigos publicados no Diário do Engenho, um dos quais de minha autoria.
Livros nunca são descartáveis. Sei que na maioria das bibliotecas existem movimentos mais recentes de dispor de vários deles por exigências de espaço, a lógica de sua disponibilidade virtual, a desatualização da língua. Mas não consigo concordar, mesmo entendendo a base de tais raciocínios. Ler um livro, em papel, de 50 anos atrás, é uma experiência para além do conteúdo, é a retomada de um tempo ao se poder conhecer como eram as soluções gráficas, como era a própria língua, como aquilo já foi reescrito com o passar do tempo com uma visão absolutamente contrária a tudo que antes fora registrado com maestria e precisão – e nem estou falando apenas dos livros didáticos, mas das ficções que tanta polêmica têm trazido à tona com suas posturas, hoje consideradas antifeministas, racistas, preconceituosas.
O prazer da leitura acrescenta, com o passar dos anos, a função de fazer com que nos encaremos tal como o tempo nos foi mudando. Tendo acrescido à própria maneira de ser novos referenciais capazes de traduzir o mundo desta ou daquela maneira, livros lidos quando éramos jovens e recuperados na fase adulta mostram quem nos tornamos – justamente pelas reações que provocam em releituras. No que se refere a amores, convivência com terceiros, conquistas de sucesso (?) certamente os enredos passam por ressignificados. E somente, então, talvez nos aproximemos um pouco mais daquilo que autores tentaram registrar.
Quando jovens lemos muito mais por entretenimento – mesmo quando as leituras são resposta à alguma obrigatoriedade escolar. Decodificamos e nos envolvemos nos conteúdos apresentados como apenas algo a mais na rotina do cotidiano. E, se conseguimos rir, ou temos a curiosidade aguçada, então a leitura acontece com mais facilidade, por vezes com prazer mesmo.
Adultos, escolhemos, se anteriormente aprendemos a gostar de ler, a estar familiarizados com algum livro por perto – o que envolve hábitos familiares, boas professoras, acesso mais facilitado ao próprio livro, inclusive em termos financeiros, naturalmente. E nem sempre escolhemos bem. Porque o processo, no Brasil, de divulgação de livros novos, de lançamentos, até mesmo de revalorização de edições anteriores atende a questões também de marketing. Não apenas da qualidade do conteúdo. Muito mais das possibilidades de venda desenhadas. E, se a mídia se encanta por determinado autor, escreva ele o que escrever dali para frente, sempre haverá espaço para suas publicações – ainda que de qualidade discutível.
Enfim, o fato é que leitura é um processo pessoal, intransferível. Prazer em ler, compreensão de até onde as leituras nos podem levar é algo progressivo, lento, e que, por isso mesmo, quando mais cedo começar na criança, mais poderá significar.
Ter bibliotecas pessoais em casa, ainda que pequenas, é fazer sua parte para com os pequenos. Com um cantinho dedicado apenas a eles. Onde eles possam chegar e encontrar algo para folhear. Onde eles possam saber que ali estão os livros “deles” e que ninguém reclamará se eles acabarem um pouco sujos, até rabiscados, com algumas folhas se soltando. É assim que se constroem familiaridades, afetos, prazer. Especialmente com livros de papel.
Beatriz Vicentini é jornalista.