E me perguntam, onde está Deus?

E me perguntam, onde está Deus?

Pálidos como a farinha que respiravam, os homens de terno decidiram
“terá que haver sacrifício humano”, e por quê?
– porque sim, pelo dinheiro, não é o bastante? – mas morrerão primeiro
os de sempre, a começar pelos negros,
melhor, pelas mulheres, e melhor ainda, as crianças,
desde que preta a pele, e brancas as palmas,
para que, assim alvas, aplaudam essa morte que vem devagar,

para que possam descansar onde já nada os alcance,
sob a terra, ou entregues ao mar, aos abutres, ao fogo,
aos vermes, enfim, algo que lhes corroa o que resta
de suas vidas dadas ao mundo como força motriz,
nada além, nada além, nada além.

Quantos deles terão nomes?, ah, mas o que importa
que lhes chamem suas mães, ou se algum dia lhes deram
apelidos carinhosos, se os colocaram no berço
de papelão, uma caixa velha, um saco de aniagem,
se lhes cantaram cantigas, para embalar um sonho qualquer de felicidade,

de liberdade e de amor, que importa?, se agora
servem apenas como carne, para ser moída,
para que se lhes arranquem os nervos e tendões,
para que se lhes apaguem as ideias e os sentimentos
que porventura restem em seus corações,

para que sejam inteiramente consumidos ao fogo do sol que abrasa,
do sal que lhes come a pele, cegos pelas luzes das máquinas,
pela escuridão das minas, pelo carvão,
que, como suas peles, é preto, preto, preto,
mas, ao contrário, tem valor de mercado, e pode ser cotado
de muitas diferentes maneiras,

e me perguntam, onde está Deus?, que não se move,
deixando solto e atroz o destino de tantos
que um dia chamou de filhos, a esses, que entrega
ao desencanto, à morte, à desesperança,
pelas mãos dos mesmos homens, ante o aplauso
da assembleia que um dia foi igreja,
onde Deus, que não o encontro, senão quando ponho os olhos e me vejo
naqueles próprios que se esvaem, que se desmancham,
pisados pelo mundo implacável,

pelos mesmos a que chamariam “irmãos”, se pudessem,
(aqueles a quem Deus chamou de seus outrora,
talvez eleitos, ou feitos, ou autoproclamados agora),
se lhes restasse voz com que gritar, se lhes restassem olhos
com que olhar o céu,
e um sorriso, à noite, deitados na sarjeta, como todos,
aninhados a se esquentar uns nos outros,
mas contemplando, como disse o poeta, as estrelas,

onde está Deus, no fim dessa triste alameda
dentro deles e delas, a torná-los mais verdadeiros
do que cada sonho desfeito, cada lágrima seca,
e mais humanos, além de toda a culpa dos que os sujeitam,

todos, antes de que o próprio Deus existisse,
e que esse navio negreiro deixasse o cais, e arremetesse
história afora, até naufragar nos tempos que vivemos,
e que jogamos fora, a cada vez que uma nova criança
vive uma infância de medo.

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”. 

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