Kyrie Eleison

Kyrie Eleison

‘Seu’ Nogueira senta-se desconfortavelmente
no banco duro da terceira fila da Igreja dos Padecimentos,
sua carteira cheia de dinheiro e documentos, no bolso de trás,
torna incômodo o se sentar, e está calor, e o ruído do ventilador
não compensa a brisa fraca que vem do altar,

de onde falava o padre num tom monótono,
repetindo as mesmas frases de todos os dias,
e do domingo passado, e parece que até a homilia
é a mesma, com as mesmas lições repetidas e amassadas,

e das paredes olham os santos, que tantos são,
que Nogueira já não se espanta
que lhes peçam tantos milagres, que os levem pra casa,
para que intercedam pelo avô, pelo gato ou pelo cão,
e ele próprio já pediu a Cosme e Damião que lhe fizessem um favor,
e demitissem o desafeto daquela filial em Salvador,
que de fato aconteceu, e Nogueira se felicitou, pouco importando a ele
que a família do outro passasse fome, que se acabasse a bonança,

desde que se cumprisse a sua vingança, e que o gerente não soubesse
de suas tramoias celestes, da promessa de doar
seis velas para o altar lateral da nave
(como são baratos esses santos, como o pagamento é suave!),

que ele dividiu em três vezes, por nada, apenas
para voltar àquele canto da igreja e poder contemplar
os seios da viúva que vinha toda terça-feira rezar
pelo marido que a deixara, tão nova, com dois filhos pra criar,

e Nogueira não perdera a chance, naturalmente, de a consolar,
na ausência da esposa, que vivia a se confessar
com o mesmo padre que lhe dava sono, e Nogueira olhava o teto,
e para os lados, e já não ouvia nada,
nem lhe interessava o que Jesus dissera, nem nada daquilo,

porque ao fundo, ainda de preto, divisava-se agora a figura
sensual daquela, que se persignava, e se ajoelhava,
inclinando-se um pouco, e deixava entrever aquele seio,
que fazia Nogueira abandonar a Deus e à família,
e a se entregar ao abismo secreto da paixão,
que ele trocava fácil pelo Santo Espírito, como um louco,

Kyrie Eleison, Kyrie Eleison, Kyrie Eleison.

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”. 

 

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