Ao examinar, em sua reunião do último dia 9 de agosto, o projeto de duplicação da Avenida Alidor Pecorari, que margeia o Parque da Rua do Porto, o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Piracicaba – CODEPAC, por maioria dos seus membros, não enxergou óbice ao referido projeto, alegando que analisou “…exclusivamente (sic) a edificação envolvida no projeto, no caso, a garagem de barcos”. Alegou ainda que por se tratar de “um projeto viário no calçamento das vias, sem alteração no conjunto edificado, não havendo prejuízo à visibilidade das edificações, devem as demais análises caber às secretarias e conselhos competentes”.
É difícil acreditar que um órgão de tamanha relevância como o Codepac não tenha, nos dias atuais, capacidade de discernimento suficiente para entender o contexto da orla do Rio Piracicaba e ter reduzido sua análise do projeto simplesmente ao impacto sobre as edificações. O órgão faz referência ao Decreto 10643/2004, que tive a honra de assinar como prefeito à época, mas não se dá conta que o seu objeto precípuo expressamente fixado é o tombamento do conjunto ribeirinho e não a mera singularidade das edificações. Ou seja, o conjunto ribeirinho compreende todo o universo histórico e paisagístico, aí incluídos, além das edificações propriamente ditas, de inegável valor, o Centro de Lazer do Trabalhador, o centenário campo de futebol, o Parque da Rua do Porto, o Largo do Pescador, as matas ciliares e a vegetação em geral, e assim por diante. As edificações são indissociáveis da paisagem.
Importante registrar que essa preocupação com a proteção do conjunto ribeirinho já estava fixado pelos decretos anteriores 8649/1999 e 9294/2000, assinados pelo então Prefeito Humberto de Campos, senão vejamos.
O primeiro decreto promove o tombamento da Avenida Beira-Rio, do Largo dos Pescadores e da Rua do Porto. Como aponta o arquiteto e urbanista piracicabano, servidor do IPHAN, Fábio Guimarães Rolim (in CONSIDERAÇÕES SOBRE O POSICIONAMENTO DO CODEPAC AO PROJETO DE DUPLICAÇÃO DA AVENIDA ALIDOR PECORARI E CRIAÇÃO DO BOLSÃO DE ESTACIONAMENTO, Brasília/DF, 11/08/2024) “…ao estabelecer calhas viárias e logradouros como objeto de proteção, o Decreto não está falando de espaços vazios, mesmo porque isso não existe: é uma coisa só o espaço resultante das diversas e diferentes interações viário, construções, vegetação, rio, etc.”. Já o Decreto 9294/2000, nas palavras de Rolim, “… complementa o anterior, especificando as mesmas vias e logradouros já citados e trazendo um detalhamento ao usar o termo conjunto ribeirinho e suas edificações”. O avanço alcançado pelo Decreto 10643/2004, realçando o conjunto ribeirinho e suas edificações, foi o de dar concretude à ampla poligonal que o delimita entre as pontes do Mirante e do Morato em ambas as margens do rio Piracicaba.
Ao fim e ao cabo, “…o processo de proteção foi além das edificações em si e de logradouros mais ou menos específicos e representativos, passando a considerar outros elementos, tais como: características morfológicas dos meios natural e construído e as interações entre eles, resultantes na paisagem; áreas vegetadas; formas de parcelamento do solo; os traçados viários; as relações espaciais, ambientais, sociais, econômicas e culturais entre o construído e o não construído”. (Rolim, op.cit.)
Não menos importante é mencionar que todos esses referidos decretos não nasceram de elucubrações, mas sim tiveram o percuciente respaldo justamente de estudos e pareceres técnicos do próprio CODEPAC. Ou seja, o órgão detinha na ocasião capacidade para entender o que o urbanismo moderno postulava em relação à proteção da memória cultural e teve o devido acolhimento pelos prefeitos de então. O Poder Executivo e o CODEPAC estavam devidamente alinhados, compreendendo visionariamente o significado da orla do Rio Piracicaba como patrimônio histórico-cultural de nossa cidade, de uma riqueza inigualável.
O projeto de duplicação da Avenida Alidor Pecorari é particularmente conflitivo com os mencionados decretos, pois, entre outros impactos, mutila o Parque da Rua do Porto! Não se trata pura e simplesmente da supressão de árvores, fato em si grave e preocupante, mas da mutilação agressiva de um equipamento social e de lazer de rara beleza historicamente inserido no conjunto ribeirinho da orla do Rio Piracicaba. Simples assim.
É no mínimo curioso, para não dizer cínico, que o CODEPAC não veja, na implantação da obra de duplicação da Avenida Alidor Pecorari, prejuízo à visibilidade das edificações, preocupação que não teve em relação às quatro torres constantes do projeto Boulevard Boyes, rendendo-se ao apetite do capital imobiliário.
É de se lamentar que o CODEPAC tenha se submetido ao imediatismo e venha dando azo à lógica de interesses estranhos ao interesse público. O órgão perdeu totalmente a credibilidade e está a exigir a sua reestruturação em outras bases, que lhe devolva a capacidade e a autonomia técnica perdidas, sob pena de Piracicaba sucumbir à devastação do seu patrimônio histórico-cultural.
Vivemos tempos bicudos, de rendição à “passagem da boiada”. A cidadania não pode abdicar do seu protagonismo, em defesa dos superiores interesses de nossa querida Noiva da Colina.
José Machado foi deputado estadual, deputado federal e duas vezes prefeito de Piracicaba.