Outras histórias de Delfim

Outras histórias de Delfim

Figuras de relevo nacional, quando morrem, em geral se alternam em necrológios mais ou menos elogiosos. O dia hoje deverá estar ocupado, na mídia, a falar sobre Delfim Netto – o todo poderoso ministro da Fazenda da ditadura militar durante os governos dos generais Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e João Baptista Figueiredo. E que depois, nessas grandes viradas da história, chegou até mesmo a elogiar o PT, declarando, em 2009, que “Lula salvou o capitalismo brasileiro”.

Delfim Netto, no entanto, tem uma passagem diretamente relacionada com Piracicaba – embora durante anos negada pelos envolvidos – e que foi confirmada, poucos anos atrás, quando um bispo metodista, presente a uma cerimônia de inauguração dos arquivos do ex-reitor Elias Boaventura, disse que tudo realmente tinha acontecido.

A data foi janeiro de 1985, mas com articulações que vinham de meses antes. Conservadores metodistas tentaram tirar Elias Boaventura da Reitoria da UNIMEP, então uma universidade que incomodava por suas audácias – sintetizadas na figura do provocativo reitor. O Congresso da UNE, o Congresso da Juventude Palestina, a Associação de Favelados, o Congresso da ANDES, Sindicatos, prostitutas, todos tinham espaço e eram apoiados publicamente pela UNIMEP daqueles anos em suas lutas. Um espaço nacional dentro do processo de redemocratização do país. O que, naturalmente, incomodava o governo militar, que só se encerraria em março daquele ano.

Um dos argumentos utilizados pelo grupo metodista que se organizou para afastar Elias Boaventura da Reitoria garantia, à época, que sua saída implicaria em liberação de verbas significativas para a instituição, negociadas por militantes do PTB local diretamente com o ministro Delfim Netto. Era versão corrente, que todos ouviam, mas que a Igreja tentou sempre evitar comentar. Depois de 40 dias com a comunidade acadêmica ocupando o campus centro, mobilizando parlamentares, nichos sociais dos mais simples de Piracicaba presentes, o próprio governo de São Paulo – então dirigido por Franco Montoro que barrou uma reintegração de posse, tornando-se manchete dos grandes jornais – Elias Boaventura foi reconduzido à Reitoria, onde completou seu mandato. A negociata, como se dizia então, mesmo envolvendo o ministro todo poderoso do regime, conseguira ser barrada pela força e união de professores, estudantes, funcionários e segmentos da esquerda em Piracicaba.

Foram necessárias algumas décadas para que o fato fosse assumido como real e não apenas meros boatos. O bispo emérito Nelson Luis Campos Leite, ao início dos anos 2000, em entrevista dada a mim admitiu que por trás das atitudes de tentativa de afastamento de Boaventura havia motivações ideológicas e uma negociação com o governo militar, que se despedia, para liberação de recursos financeiros para a Universidade. Mas foi apenas em 2013, quando houve uma inauguração dos arquivos do ex-reitor que o próprio Nelson Leite, em fala rápida ao grupo ali presente, admitiu que toda a Igreja Metodista sabia das negociações com o ministro da Fazenda, que vinculava diretamente a não permanência do reitor à liberação de verbas para a UNIMEP. O montante, conforme o próprio Elias adiantava à época, era de 8 milhões de reais.

O dinheiro não veio, Delfim Netto deixou o governo Figueiredo com o país enfrentando uma inflação anual de 235% e uma dívida quase quatro vezes maior do que a do início da ditadura. Histórias outras, além daquelas certamente registradas nos necrológios hoje.

 


Beatriz Vicentini é jornalista.

 

 

 

(Imagem de capa: charge feita por Ziraldo, 1980 – acervo O GLOBO.)

3 thoughts on “Outras histórias de Delfim

  1. Excelente resgate histórico. Aliás, o que seria de nossa noção do Piracicabano sem a historiografia de Vicentini – essa Bia carlopolitana!!!

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