Havia deuses, antigamente, deuses muito evidentes,
que traziam paz ou guerra, que faziam chover ou secar a terra,
que tratavam os humanos como bonecos de pano,
que eram também humanos como nós, ou meio humanos,
e meio bichos, e tudo o mais que se imaginasse, mas eram deuses,
e era relativamente fácil viver com eles, bastando para tanto oferecer-lhes
um cabrito, de vez em quando, ou um bode, uma pomba, uma virgem,
o coração de um guerreiro, e estava tudo certo, e o mundo ia, de buraco em buraco,
como uma carroça vazia, fazendo muito barulho,
mas sem grandes consequências, pelas estradas da vida.
E o panteão crescia ou diminuía, ao sabor dos ventos,
e havia sempre um deus maior, que complicava a vida,
tanto dos outros, com suas manias, quanto dos humanos,
que, por via das dúvidas, o aceitavam como era, em geral irascível, ciumento e imprevisível,
poderoso, intrometido e quanto mais houvesse,
quanto mais havia.
Ah!, bons tempos aqueles, em que raios fulminavam os incréus
por dá-cá-aquela-palha, por um nadinha, um erro qualquer,
e iam os barcos pro fundo, morriam as crianças nos braços das mulheres,
e eram os homens destroçados em batalhas, por mais superiores que fossem seus exércitos.
Os deuses se banqueteavam, roendo até os ossos
aqueles condenados, e condenando os demais, para que não restasse ninguém
que pudesse se gabar de ter sido salvo.
A vida era simples assim, e ninguém, com um mínimo de bom senso, a contrariava.
Até que… bem, o resto já se sabe: apresentou-se a nós
um novo Deus, feito de carne,
mas era muito difícil entender o que dizia, ele era muito complicado, de tão simples,
e os humanos, sempre precavidos, acharam por bem matá-lo, e seguiram,
muito felizes, traduzindo em bobagens simples
a mensagem metafísica de amor que ele trouxera,
e com a qual se apresentava,
e assim segue a humanidade, até hoje, fazendo falsos sacrifícios a uma falsa divindade, por ela mesma inventada,
e ao novo Deus, que viera para salvá-la de si mesma, não restou nada,
senão sentar-se a um canto, fora da mesa, e esperar
que um pouco de juízo, quem sabe amor, entre naquelas cabeças,
e nos corações secos daqueles, que,
a cada novo dia, continuam, meticulosamente, a matá-lo.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.
Belíssimo