Dois movimentos de massas nas ruas: as diferenças

Dois movimentos de massas nas ruas: as diferenças

O depoimento-reflexão abaixo, escrito há mais de uma década, compara, a partir da vivência do autor, dois movimentos de massa históricos da política brasileira recente: o das Diretas-já (que completa neste mês 40 anos, tendo contribuído para o resgate da democracia) e as manifestações de rua de junho de 2013 (talvez o estopim, há uma década, do avanço da direita no país, culminando com o bolsonarismo – o que, então, não estava claro). As manifestações de 2013, em diversas cidades do país, principalmente nas maiores, como São Paulo, iniciaram-se contra as elevadas tarifas do transporte urbano, ampliando depois suas pautas.  As chamadas “Jornadas de Junho” levaram às ruas milhares de pessoas, sem uma liderança definida, gerando enfrentamentos com a polícia, violência e vandalismo, fartamente repercutidos na imprensa, inclusive internacional. A imagem mais emblemática destas manifestações foi a ocupação, por uma multidão, da marquise do Congresso Nacional, onde ficam a Câmara dos Deputados e o Senado, após alguns participantes furarem o cordão de isolamento da Polícia Militar.

Trata-se de texto-base de palestra proferida pelo autor, então professor do Departamento de Administração Pública, para alunos de cursos da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara, em junho de 2013, comparando o movimento das Diretas-já com as violentas manifestações de rua de 2013.

***

Eu fui um dos organizadores, em nível local, na cidade de Araras SP, do Movimento pelas Diretas-Já. Por oportuno, dou aqui meu depoimento destacando as diferenças entre aquelas jornadas de luta e as atuais manifestações [de junho de 2013]:

  1. O movimento pelas Diretas-já nasceu de uma combinação da exaustão da ditadura militar com o esgotamento do modelo de desenvolvimento econômico: era preciso melhorar a política, democratizando as relações Estado-sociedade, para se buscar melhoria nas condições de vida da população, então às voltas com o desemprego, a inflação, a carestia; as atuais manifestações [de junho de 2013] negam a própria política como esfera de delineamento da vida em sociedade.
  1. Os protagonistas de vanguarda do movimento pelas Diretas-já eram os movimentos sociais ligados às reivindicações de bairro, sindicais, por saúde, por moradia, por reforma agrária e entidades (como OAB, ABI, CNBB, SBPC etc.) alinhadas contra a ditadura; as atuais manifestações[de junho de 2013]não têm lideranças identificáveis, brotando “espontaneamente” de agitações prévias nas redes sociais.
  2. Na luta por Diretas-já havia comitês por cidades e por bairros (em grandes centros) que organizavam manifestações onde se realizavam amplos comícios, precedidos de debates nos comitês; no movimento atual[de junho de 2013] não há debate, mas gritos contra a situação atual.
  3. Durante o movimento por Diretas-já os partidos se alinharam contra as mudanças e a favor delas, tendo que se virar para manter sua coesão interna (na ocasião o PT expulsou dois de seus pouquíssimos deputados federais que se comportaram contrariamente à posição majoritária dos seus militantes); no movimento atual[de junho de 2013] os partidos são recusados, ao invés de serem questionados no debate e na pressão.
  4. A mobilização durante as Diretas-já foi à base do convencimento; atualmente[em junho de 2013] a adesão se dá à base de persuasão midiática e nas redes sociais, com palavras de ordem genéricas.
  5. Pode-se dizer que o movimento pela Constituinte foi decorrência imediata do movimento pelas Diretas-já; não há resposta para qual tende a ser o desdobramento das atuais [de junho de 2013]manifestações de rua [hoje, 2024, sabemos que o resultado foi o bolsonarismo].
  6. As Diretas-já levaram muito mais pessoas às ruas e praças e durante e ao final não havia depredações, como as que estão ocorrendo atualmente [em junho de 2013].
  7. 8. O Partido dos Trabalhadores, atualmente [em 2013] no poder central e em vários governos estaduais e municipais, era, ao tempo das Diretas-já, um partido nanico, cujo crescimento se beneficiou não só do movimento pelas Diretas-já, mas de todos os demais dos anos 1980; não se sabe, ainda, qual será o efeito das atuais [2013] manifestações de rua sobre a configuração partidária no Brasil futuro [hoje, 2024, sabemos que houve um avanço dos partidos de direita].
  8. O PT fez, ao longo dos anos 1980, oposição sistemática ao regime e aos governos de então, com base em amplo apoio social (era, como se dizia então, um partido de bases, rejeitando a condição de partido tradicional de massas); o tipo de oposição aos governos (principalmente ao governo federal petista) atualmente [2013] é muito diferente, estando a maioria dos partidos na rede enlameada do presidencialismo de coalisão e do federalismo de conveniências políticas, propensos a práticas imorais e ilegítimas, mesmo que ao abrigo das leis.
  9. Havia ao tempo das Diretas-já movimentos sociais enraizados em situações sociais e posicionamentos políticos bem definidos; hoje [2013], os “novos movimentos” respondem a apelos quase que exclusivamente emocionais, tendendo a explodir em gritos e movimentações generalistas.

 

Nota dos editores: a respeito das Jornadas de Junho de 2013 foi feito o documentário “Junho – O mês que abalou o Brasil”, de 2014, dirigido por João Wainer. Na ocasião, o autor do texto, Prof. Valdemir Pires, iniciou uma página no Facebook, ainda disponível, para acompanhar os desdobramentos: https://www.facebook.com/groups/129763133897503 .

 

(foto: Jornadas de junho, de 2013, com a invasão que houve do Congresso Nacional/Nelson Oliveira: Agência Senado).


Valdemir Pires e economista e escritor.

One thought on “Dois movimentos de massas nas ruas: as diferenças

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *