Sentir em Quatro Tempos

Sentir em Quatro Tempos

  1. Claraboia

No telhado, os aviões me atam à cama. Prendo-me à sina de cada turbina a ecoar na noite o seu grave marítimo. E migro. Migro em mim num voo íntimo e solitário que me salva e põe à prova. Em cada nova decolagem, sumo solene e veloz entre nuvens de travesseiros e a vidraça da janela do meu quarto.

Não há distância maior que entre mim e o mundo se faça, nem mais seguro transporte e destino. À música dos grandes aviões sobre a laje, decolo sonhos idos num existir que fica e transcende, que estanca e passa. Depois, viajo raiz. Finco no chão minhas mãos de arado sem garra e deixo a terra escapar entre os dedos como lençóis a escorregar do colchão. Ouço outro avião.

Não há nada que me prenda ao colo quente do ninho – a não ser o sempre desejo de ir sem nunca querer ter partido.

 

  1. Aquário

Um passo à frente é sempre um passo atrás, porque contra a corrente o peso da onda se faz. A força segue adiante, os pés cravam a areia, mas a vaga que se levanta devolve à praia o corpo que mareia.

Um barco se lança ao mar quebrando a rebentação. Porém, o seu remo torto só faz a rota que retorna ao porto. Não há trégua e não há mágoas, há apenas a vida cansada que da terra desprendida quer voltar a ser água.

As sereias agora cantam seus reversos ao vento, desentoando à cada canção a desinibição de um advento. À margem, Ulisses-renitente ainda não descobriu que para chegar ao paraíso navegar não é preciso, é preciso primeiro ser semente.

  1. Passaporte

Não tenho bilhetes para acompanhar sua viagem, nem espero você em qualquer porto de partida. Meu estar é sempre aqui em despedida vendo você ao longe abandonar a margem. Fico raiz em corpo de terra feito a arado. Semeio minhas tristezas e as colho com as mãos. Depois, me sopro pólen e me espalho orvalho estando em casa em plena amplidão.

Por isso, talvez Lisboa também corra em meus dedos e Luanda seja meus nervos e minha pele. Moçambique, as pintas que me nascem em segredo sem que eu saiba delas ou me rebele. Paris, assim, está em minhas costas. Nova Deli é, pois, o meu nariz. Meus pés, pela manhã, Amsterdã, meus olhos a Madri que eu sempre quis. Toronto é aqui, diante do espelho. Roma é onde bate o coração. Numa gare de cores nos cabelos, em Londres sou o chefe da estação. Não tenho, mesmo, os seus bilhetes, as suas passagens, os seus ingressos.

Ao fim da tarde, porém, venho de regresso a casa com o vento e recolho-me na varanda coberta de folhas secas rodeada de lavandas. E antes que meu dia acabe, subo à gávea lunar onde, cansado, na sacada pastoreio os astros. E adormeço vendo seus passos, no caminho divino, pelo mundo a desvelar ciranda sem rastros: papel feito mapa atento e sério do universo de mistérios por onde você anda.

  1. Dossel

Sozinha, no breu, a noite lá fora sou eu. Na janela, hora a hora, minuto a minuto, a noite sou eu e sou ela – em nossa união resoluta de escuridão e pedra bruta.

Não há antecipações de porvir. Não há sobreposições de graus. Não há velocidades remotas. Lá fora, a noite, que sou eu, em mim espera estelar e sem pressa – go-te-jan-do-se-gun-dos – pelo sonho em clarão, visão de luzes-pensamento, que ao longe no firmamento ainda dorme aqui dentro.

 


Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

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