Babacas

Babacas

Não foi fácil chegarmos a um acordo para gritarmos direito,

todos juntos. Havia sempre um que começa antes do “três” ou demorava demais,

mas no final já conseguíamos fazer a coisa bem feita.

Ítalo Calvino.

 (“O homem que chamava Tereza”)

Na esquina o guarda da esquina, que não é guarda nem veste farda. “Ê, babaca!” – gritava entre outros impropérios obscenos. “Pensa que eu não estou te vendo? Vem aqui para você ver uma coisa, babaca!” O guarda da esquina se exaltava com facilidade. Talvez um certo daltonismo o estimulasse a reagir a cores quentes feito um touro. Talvez uma miopia confusa fosse a chama de sua alma agressiva, de seus gestos bruscos desproporcionados e que faziam dele uma caricatura de si mesmo, uma figurinha desbotada descolada de um álbum da Copa de 70 que passou décadas na chuva. “Vai para a Argentina, babaca!” – gritou o guarda da esquina ainda mais alto, impressionando os que passavam por ali e davam conta de como um vovozinho era capaz de berrar assim, como um boi no abate. “Cuuuba! Cuuuba!”

Um rapaz parou em auxílio. “Onde é que está esse babaca?” – perguntou querendo exibir os músculos fortes e definidos que não tinha. O guarda da esquina se enfureceu. “Onde? Como onde? Você não está vendo?” O rapaz espichou os olhos. “Ah, sim… sim… claro…” O guarda desconfiou. “Você não é um deles não, né?” – perguntou como se desse um tiro à queima roupa. “Deus, família e propriedade me livrem!” – respondeu o rapaz, que logo na sequência emendou um grito na mesma direção para a qual berrava o guarda da esquina. “Babaaaca” – explodiu o rapaz. “Acho que vamos precisar de ajuda” – disse o velho guarda depois. “Não seria melhor convocar outros cidadãos de bem pelo zap” – perguntou o rapaz – “o senhor deve participar de vários desses bons grupos, não?”

Mais dois outros homens pararam por ali. “Onde está esse babaca?” – perguntaram também. O velho guarda da esquina se enfureceu novamente. “Vocês não enxergam, não?” – esperneou decepcionado. Os homens igualmente espicharam os olhos. “Babaaaca!” – gritaram com repentino empenho forjado. “Babaaaca” – corresponderam o rapaz e  o guarda da esquina, alternadamente, uma e outra vez. “Não está funcionando” – comentou o rapaz, não sem grande receio pela resposta que lhe daria o guarda da esquina. “Talvez se combinássemos gritar em sequência” – disse um dos homens. “Isso! Aí teríamos um som contínuo por alguns segundos”, reforçou o outro. O velho abriu o jogral: “babaaaca.” Depois o rapaz: “babaaaca!” Na sequência os outros dois: “babaaaca,” “babaaca”. Silêncio. O rapaz ainda espichava os olhos pela rua.

Algumas mulheres se achegaram ao grupo. Uma família com três crianças que brincavam com revólveres de água parou para ver o que acontecia. Um homem de terno, com o que parecia ser uma bíblia debaixo do braço, surgiu propondo que se trocasse a palavra “babaca” por outra mais forte, mais agressiva e – por isso – mais divina. “O diabo não se vence assim, não. É preciso dinheiro e vigor para exorcizá-lo” – ensinou. Após pequena deliberação, o grupo resolveu que “babaca” era a palavra ideal – pois era uma palavra que todos já sabiam e não seria necessário aprender nada novo – e, ademais, conservadores conservam sua tradição. “Então, que tal se gritássemos todos juntos, de uma só vez” – disse uma senhorinha mal chegada. “Excelente ideia. Ao meu sinal, todos berramos”, ordenou o guarda da esquina erguendo a mão direita e fazendo uma arminha com ela. “Babaaaaacaaa!” – gritaram em coral a plenos pulmões tão logo o velho guarda da esquina disparou sua munição imaginária.

Terminado o coro, um estampido cheirando à pólvora começou a dispersar o grupo – em efeito contrário ao que queria o atirador-colecionador que por ali caçava a oportunidade de usar a arma e a munição que lhe haviam custado um bom dinheiro. “Aqui é cidadão de bem, babaca!” – berrou antes de atirar novamente contra o céu. Bumm! Sem quererem demonstrar medo ou contrariedade, as pessoas foram se indo, sorrateiras. O guarda da esquina foi o primeiro que não mais se viu após o segundo disparo. Os demais foram se remisturando pelas ruas – levando consigo, porém, aquela sensação boa de dever cívico cumprido. Quando a viatura da polícia – que lentamente veio verificar a ocorrência – estacionou, a esquina era quase um vazio só, um estádio de futebol solitário e sujo após um jogo da seleção.

“Babaaca… babaaaca” – se ouvia gritar ainda, ao longe, em volume bem mais ameno, um remanescente do grupo que, esquecido por ali, usava seu último fôlego enquanto um dos policiais, descidos da viatura, perguntava onde estava o babaca a que ele chamava.

(crônica publicada em “A Tribuna Piracicabana” nesta sexta, 26/08).

 

 

 

 

 

 

 

Alê Bragion é cronista desta Tribuna desde 2017. 

 

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