Um ciclo sem fim. Ou o que você não quis enxergar

Um ciclo sem fim. Ou o que você não quis enxergar

Longe de querer causar polêmicas, experimentos são feitos em laboratórios, e experiências são feitas no decorrer da vida. Experimentos são testes, provas. Experiências são as emoções, tudo aquilo que toca nossa alma. A literatura é uma das maneiras de termos nossa alma tocada pelas vivências de personagens, que nos representam em outros contextos. A leitura nos leva a viver grandes experiências, e o bom dela é que não temos que sofrer na pele as amarguras do conflito vivido pelas personagens. Sim. Toda boa narrativa tem um conflito. Conflito, aqui, é qualquer  situação que a personagem tem que resolver.

E foi com a leitura de “O Quinze”, livro de estreia de Rachel de Queiroz, que conheci as amarguras da seca. Entremeios o romance da professora Conceição e Vicente, a autora descreve a caminhada da família de Chico Bento da fazenda onde trabalhava, em Quixadá, até Fortaleza, para fugir da seca que assolava o país em 1915. Inesquecível a passagem em que a família de retirantes se alimenta de tripas de uma cabra encontrada morta no caminho, vísceras “doadas” pelo capanga que levou as carnes para a fazenda – mais uma bela metáfora – … ou eram as tripas ou era a fome… e o ano era 1915… e a seca era no Nordeste. E o romance permitiu que se experiencisasse o sofrimento da seca …

E o Nordeste continua seco até hoje. Ainda há brasileiros e brasileiras que como a família de Chico Bento se alimentam de “tripas” doadas metaforicamente pelos mais diversos tipos de capatazes do sistema que a cena do romance de Rachel de Queiroz representa. Uma certa fila para receber ossos de açougues poderia ser a referência atual…. Assim como há pequenos produtores – muitas vezes até com curso superior –  que estão longe da transposição das águas do Rio São Francisco, os muitos Severinos, que resistem a períodos de seca de cinco, seis anos. Estes, alimentam seu rebanho com a palma forrageira, vegetação local, e compram água a preço de petróleo tanto para seu consumo como para seu rebanho. São os heróis da resistência e assim seguram a economia da região.

Mas as condições climáticas não mudam por castigo divino; mudam como respostas da ação do homem. Poluição. Desmatamento. Crescimento urbano. Progresso. Política ambiental. Tudo aquilo.  E a região Sudeste está para viver a experiência da seca, devido ao período de estiagem que vem por aí, tal qual o que assolou o Nordeste em 1915. A diferença é que a demanda dos recursos hídricos da região Sudeste hoje é outra e esse assunto não foi tratado como devia. O já visto nos anos 2000. O contexto vivido nos bairros mais miseráveis das cidades em que a falta d’água é rotina vai ser a tônica de todos. Ou da maioria. As campanhas contra o desperdício devem surtir algum efeito e vamos ter que escolher o que vamos fazer com a pouca água que teremos nos próximos meses: lavar a calçada, a roupa, cuidar da higiene pessoal ou preparar a alimentação. Vai ser uma questão de escolha, de consciência. De mudança de hábitos. Mudança de hábitos pela qual a população está passando a duras penas nos últimos meses, em decorrência da pandemia. É apenas mais um elemento a ser somado.

De lá para cá. De ontem para hoje. Fernando Sabino, em sua crônica “Piscina”, registra a invasão de uma mansão por uma moradora de uma comunidade para pegar uma lata de água da piscina, enquanto a madame tomava um banho de sol… o que levou à venda da propriedade, na semana seguinte. Com mais de quarenta anos, a crônica de Sabino se faz atual e revela a simplicidade com que problemas sérios são pontualmente solucionados, ou jogados para o futuro. Simbolicamente, as mulheres da lata d’água na cabeça continuam em sua busca, agora em maior número delas; as madames e as outras, têm uma nova rotina: aproveitar a água do banho – quanto tiver – para a descarga do vaso sanitário ou guardar para reuso. Novos dias. Velhos ensinamentos. Quisera que tudo tivesse ficado nos livros.

Enfim… o óbvio tem que ser dito e o óbvio tem que ser feito. O romance de Rachel de Queiroz registra um problema secular. Outros registros há da mesma situação, em outras regiões do país, em outros períodos. Infelizmente, nem uma coisa, nem outra. Os experimentos tecnológicos não bastaram para sanar ou prever a falta d`água, nem as experiências comoveram o suficiente para mover ações humanitárias nesse sentido. O saldo é o que temos pela frente: um período de estiagem – reação natural da natureza -, sobretaxa nas contas de energia elétrica e, principal e tristemente, mais perda na qualidade de vida para um segmento da população brasileira.

 

 

 

 

 

 

Élder de Santis é professor e mestre em Educação. 

3 thoughts on “Um ciclo sem fim. Ou o que você não quis enxergar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *