Os fragmentos abaixo foram encontrados em versão manuscrita, sem assinatura, talvez produzidos por algum ministro ou governador que diz ter estudado em Harvard sem mesmo nunca ter posto os pés lá. Historiadores sérios, no entanto, vão dizer que se trata de uma vulgata muito vulgar. Por outro lado, fiéis cairão de joelhos acreditando ser mesmo um texto de algum profeta visionário numa revelação apocalíptica neoliberal. Outros ainda, os mais atentos, saberão – todavia – tratar-se apenas de uma versão dantesca da realidade. Em todo caso, para que cada um dos leitores chegue a sua própria interpretação, vamos agora para alguns excertos desse aterrorizante enigma em forma de relato.
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Vi então uma massa branca se arrastando pelas ruas. Não era grande. Mas se movimentava ao comando de uma voz que ribombava de um megafone e anunciava a chegada de um enviado divino: “ele é o ungido de Deus! Deus o colocou lá! É o nosso redentor, veio para nos salvar”. Dos céus, nada descia – nem um mísero sinal de luz, nem um trovãozinho sequer referendava o poder que a voz conclamava em nome do Senhor. Vi ainda que a massa respondia inflamada aos impulsos dessa voz megafonada. “Glória a Deus! Deus é nosso pastor”. E à ordem da voz misteriosa, a massa branca se mexia e se transformava em bestas-feras sem cabeças – ora em tons dourados ora em matizes verdes dum colorido ar futebolístico cbfiano. “O enviado chegou! Ele deu seu sangue por nós! E o que nós vamos dar por ele?” – incitava a voz.
Meus ouvidos ardiam. Meus olhos não queriam ver. A cena era fatal. Tive a certeza de que o fim dos tempos havia chegado – não havia dúvidas – eu presenciava o Apocalipse Now em terras tupiniquins.
De repente, a voz no comando exigiu a autoflagelação da massa. “Nada de aposentadorias! Para que se aposentar? Reforma da previdência, já!” E os servos bestiais travestidos de um falso verde e amarelo emendavam: “Glória ao Senhor nosso Deus! É por ele! Pelo Enviado! Ele derramou seu sangue por nós! Façamos o que ele nos pede”. Então, ouvi ainda um dos que tomavam parte daquele momento divino dizer ao amigo ao lado: “Sangue? Mas eu não vi sangue nenhum no enviado? Havia sangue mesmo?” Coitado. Ao dizer essas palavras teve o infiel de cair de joelhos. As bestas o queria imolar acusando-o de heresia. Afinal, o enviado fora esfaqueado aos olhos de todo o povo de Deus – e se dele não jorrou sangue nem água foi por que o mistério do Insondável se abateu sobre ele. “Homem de pouca fé” – gritavam as bestas ao herege – “vai pra Cuba! Vai pra Venezuela!”
Foi então que vi surgir pelos ares tábuas contendo leis desconexas. “Faculdade é balbúrdia” – anunciavam umas. “Sodoma e Gomorra, Sodoma e Gomorra” – anunciavam outras. Havia barulho e buzinas. Bandeiras da monarquia foram erguidas para marcar o sinal de união mística do enviado para com Deus – rei na terra, rei nos céus! Mas do céu, mesmo, ainda nenhum sinal de apoio ao povo que invocava seu nome divino.
“Escola pública é imoral! Chega de educação marxista! Chega de Paulo Freire!” – gritavam os que agora raivavam pelos olhos a força divina que os conduzia no sagrado caminho da libertação comunista. Cheguei a tremer. Meus ouvidos me traíam. Meus olhos se negavam a ver e meus sentidos não faziam mais sentido algum diante dessa surpreendente revelação apocalíptica.
Caí de joelhos. Nunca pensei que veria, em meu tempo, a dissolução da humanidade num (sem) juízo final. Cheguei a duvidar do que presenciava. Alucino? Será tudo apenas uma visão infernal?Estão mesmo lutando contra a educação e a escola pública? Pedi que os céus me dessem um sinal.
Então, finalmente, vi abrir-se uma janela em luz. Nela, um velho barbudo – sentado em um trono de nuvens – aparecia meneando negativamente a cabeça em sinal de desaprovação e com ares de poucos amigos. As bestas não viram nem sentiram a presença do Senhor. Estavam surdas e cegas – e agora gritavam palavras de ordem contra instituições democráticas como o STF e o Congresso. “Chega da velha política!” – urravam em coro – “Salve o nosso enviado e sua família – novo modelo nosso!” “Democracia é coisa de comunista!”
Trombetas soaram a hora do almoço e as bestas foram se dispersando. Era domingo e ainda precisavam assistir à missa, ao culto e aos programas da tarde na televisão. Enfim, quando achei que tudo havia terminado, a voz em comando anunciou que seria tocado um hino. Houve comoção, choro e ranger de dentes. Muitos queriam cantar o hino, mas desconheciam a letra ou não entendiam o que ela retratava. Mesmo assim, mãos no peito anunciavam que o hino era bonito e sagrado.
Depois, o sol continuou brilhando como estava. E a massa bestial seguiu pelas ruas. E enquanto seguiam em marcha, apenas eu vi o Senhor – de verdade – a continuar meneando a cabeça em desaprovação e se lamentando pelo fato de não ter deixado os gafanhotos, em outra era, terem acabado de uma vez com tudo.
(Crônica publica em A Tribuna Piracicabana, 28/05/19).
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Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.