A Morte da Justiça: o Brasil de Kafka.

A Morte da Justiça: o Brasil de Kafka.

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Alguém devia ter estado contando mentiras a respeito de Joseph K., pois não tendo feito nada de condenável, uma bela manhã foi preso.

 – … existiriam argumentos a seu favor que tinham sido esquecidos? Era evidente que existiam. Incontestavelmente a lógica é inabalável, mas não pode opor-se a um homem que deseja continuar vivendo. Onde estava o Juiz? Onde estava o Tribunal de Justiça? Tenho algo a dizer… Ergui as mãos…

(Franz Kafka)

 

 

O momento exige que leiamos Kafka – que releiamos Kafka até nos arder os olhos. O momento exige que retomemos, antes de tudo, a leitura do magnífico (e agora ainda mais que profético) livro “Der Prozess” (O Processo) – (re)organizado por Max Brod, amigo do mestre checo, e publicado em 1925, após a morte do grande gênio. O momento exige que redescubramos os passos incertos da personagem Joseph K., e redescortinemos em nossa mente, por meio deles, a imensidão abissal do absurdo que a alegoria – tipificada pela trajetória dramática dessa protagonista – nos presentifica. Sim. O momento exige que nos debrucemos novamente sobre “O Processo” de Kafka e sobre processos tão nevralgicamente contemporâneos, igualmente instalados debaixo das lentes baças de um estado de direito que agoniza.

Lula seria o nosso Senhor K.? Teria ele acordado numa bela manhã, isento de culpas, pronto para ser preso pelo representante de um estado de exceção que se impõe livremente como se atuasse dentro dos princípios da ética, da justiça e da lei? Teria o ex-presidente, para sua estupefação, encontrado ao pé de sua cama – onde, tal como o Senhor K. do livro de Kafka, esperava encontrar o desjejum – os membros de uma força policial a mando de um tribunal nonsense que lhe anuncia um indiciamento insólito? (Relembrando o livro: “Não pode sair, está preso!” – diz o oficial a Joseph K., na alcova da personagem. “Assim parece” – revida K – “Mas, por quê?” – acrescentou ainda a personagem à sua pergunta. “Não estamos autorizados a dizer-lhe. Vá para seu quarto e espere lá. Contra o senhor foi instaurado um processo” – sentencia, por fim, o personagem representante da “justiça”).

Talvez numa outra via, diferentemente do senhor K. (do livro de Kafka), o nosso “senhor L” – passemos a chamá-lo assim, para não perdermos a atmosfera do absurdo – sabe do que lhe acusam. E de que lhe acusam, afinal? Vejamos. Sobre o nosso senhor L. pesa a acusação de ser proprietário de um apartamento na praia das Astúrias, na cidade litorânea do Guarujá, estado de São Paulo. Vale repetir: um apartamento no Guarujá (!). Pesa também a acusação de ser o proprietário secreto de um sítio, no interior de São Paulo, e de um barco de ferro (desses de pesca) e de alguns pedalinhos (!). Realizadas buscas pela “justiça”, nada foi comprovado – não havendo, assim, provas de que esses tão caros bens sejam, de fato, do senhor L. Quer dizer, a “justiça”, efetivamente, não tem como comprovar nada (mas isso, todavia, ainda não significa que K., ou melhor, que L., não seja realmente o dono desse espólio). Avancemos.

Ao lado de nosso Senhor L. – no mesmo universo quase literário, quase fantástico que estamos relendo – orbitam ainda outros seres talvez muito mais sinistros que L – e sob os quais pesam acusações gravíssimas, cujas provas avolumam-se dentro de gavetas emperradas (ou lacradas propositalmente). Assim, e para os agentes da “justiça” desse universo dantesco, helicópteros recheados de cocaína não interessam nem ajudam ao enredo que se quer estabelecer. Da mesma forma, depoimentos, delações e planilhas que comprovam a transação de milhões e milhões (realizadas, diga-se de passagem, pelos adversários políticos do senhor L) não servem de nada para a “polícia” que investiga o crime no país. “Vamos atrás dos pedalinhos do senhor L” – devem dizer entre si os promotores responsáveis pela investigação. Mas, nada. As investigações sobre os pedalinhos parecem infrutíferas – “tudo deve ter sido, realmente, muito bem planejado.”

No centro desse teatro ridículo, resta ainda reconhecermos o papel da mídia e da opinião pública por ela formada. Afinal, tal como em Kafka, o Senhor L de nossa história já foi condenado por todos muito antes de, sequer, ser indiciado e julgado. Os variados órgãos da chamada grande imprensa não se incomodam em repercutir a esquizofrênica tese da promotoria, que afirma: não há provas, mas há culpados. Em coletiva de imprensa dada pelos promotores desse “processo” de K., quero dizer, de L., as máximas falácias surgem, então, peremptórias: “não há provas cabais”; e em outro momento “temos convicção”. A narrativa do absurdo assim prossegue, bestialmente, sem sobressaltos ou estranhamentos da imprensa. Afinal, tudo cabe num enredo construído a partir de afirmações e conclusões descabidas. Fechando a trama, L é acusado de chefiar um governo pautado numa “propinocracia.” E agora? Será verdade? Nunca saberemos. Para a justiça do Brasil de Kafka, agora apenas bastam convicções. Provas não são mais necessárias.

Segue-se assim, na perspectiva desse enredo kafkiano, um desfecho dessa narrativa que se projeta igualmente no absurdo. Como poderia ser diferente? No Brasil de Kafka, rasguem-se agora os livros e códigos legais. No Brasil de Kafka, fechem-se agora as faculdades de Direito. No Brasil de Kafka, extinga-se a Defensoria Pública. Afinal, no Brasil de Kafka uma acusação não mais precisa ser fundamentada com provas – bastam agora convicções. Aliás, no Brasil de Kafka já basta, há muito, a tese do “domínio do fato”. No Brasil de Kafka, uma presidente da república ficha-limpa pode ser julgada por senadores e deputados fichas-suja (e que respondem a processos por corrupção, lavagem de dinheiro e outros). No Brasil de Kafka, depõe-se uma presidente eleita pelo povo e se coloca em seu lugar um presidente que tem seus direitos políticos cassados e está impedido de concorrer a novas eleições nos próximos oito anos. Sim. No Brasil de Kafka, valem apenas as convicções e as suposições – mas apenas as da elite. No Brasil de Kafka, valem as “forças secretas,” as “forças ocultas”.  No Brasil de Kafka, cabem processos anunciados, cabem juízes que revelam antecipadamente suas sentenças e que, ainda por cima, participam ativamente do discurso político e partidário nacional.

O momento exige que leiamos Kafka. O momento exige que releiamos Kafka até nos arder os olhos. Talvez só assim possamos entender que o processo que agora vemos, kafkiano em sua essência, não condenará apenas Lula a uma pena severa, mas condenará a todos nós ao fatalismo do nada, do estado de exceção e do imponderável.

 

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Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

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