GRUPO DE PESQUISA DIREITOS HUMANOS E JUVENTUDE
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO
CAMPUS CAPIVARI / PIRACICABA
O delicado momento político e econômico por que passa o Brasil não pode ser interpretado ao largo de uma leitura histórica mais crítica, problematizadora e ampla. O próprio tema da corrupção está intrinsecamente arraigado ao processo de formação do país. Ao longo da história brasileira a corrupção tem assumido diferentes matizes, tornando-se realidade constante tanto na esfera pública quanto no âmbito da iniciativa privada. O mandonismo, o coronelismo, o clientelismo, o patrimonialismo, o fisiologismo e o nepotismo desdobram-se como facetas de um país cuja identidade moral está perpassada pelo autoritarismo e corrupção institucionalizada.
É preciso, no entanto, que a corrupção seja reconhecida como um fenômeno estrutural que constitui as bases do capitalismo contemporâneo e não apenas como evento pontual que emerge em terras brasileiras e assume sigla partidária. É preciso superar essa visão maniqueísta e beber novamente das lições da História.
A construção moderna da noção de Estado de Direito, inaugurada com a filosofia política, desde o século XVII, vislumbrou a formação do Estado como instância reguladora, responsável por gerir o campo político para a construção do espaço público, como representação da vontade coletiva. A ambição maior dessa utopia foi a de costurar a aparência necessária de uma suposta neutralidade do Estado assim como a noção de que ele estava acima dos interesses divergentes, acima da luta travada no terreno real onde os antagonismos nascem e amadurecem. O Estado, na era das revoluções burguesas, procurou efetivar tal aparência a partir da articulação de algumas garantias democráticas, reconhecidas no estabelecimento de algumas constituições e engenharia legal. É fundamental que se ressalte que as tensões e intensas lutas sociais, algumas alavancadas com armas, outras com ideias, têm promovido importantes mudanças nos arranjos estatais nos últimos 200 anos.
Em âmbito internacional, há evidentes sinais do esfacelamento do conceito de Estado Democrático de Direito. Em nome da hegemonia do mercado global, da segurança nacional, do combate ao terrorismo, da governabilidade, da defesa à propriedade etc. suplantam-se direitos políticos, sociais e civis. É o Estado em sua vertente totalitária, que passa a se manifestar não a partir do direito, mas por meio da violência e do controle autoritário. É a banalidade do mal que está imbricada ao totalitarismo, desvelando o intenso processo de extinção de horizontes democráticos.
No contexto brasileiro, com suas ainda frágeis instituições democráticas – muitas recentes no pós-ditadura militar – o embate no campo jurídico vai se revelando desleal e à margem da própria legalidade, quem sabe até, numa leitura mais radical, revelando mesmo a ficção jurídica de que a democracia possa encarnar sob a complexidade do direito. O que tem se desvelado nos últimos dias não nos demove dessas interpretações: a utilização de instrumentos de coerção, a colaboração a partir do encarceramento, o vazamento oportunista de informações, a investigação seletiva de pessoas, o desrespeito ao foro, entre outras ações não deixam de manifestar, no mínimo, o desacordo para com a Constituição de 1988 do país, escrita durante o processo de redemocratização brasileiro.
Há em curso um processo de aviltamento do direito, sob o auspício de uma honorável justiça. Corre-se o risco dos próprios operadores do direito – alguns representando o poder público, outros institucionalmente guardiões da constituição – tornarem-se meros justiceiros, representantes de uma ordem não mais jurídica e tampouco democrática. O justiceiro passa a incorporar a projeção do herói, do salvador da pátria.
O enfrentamento à corrupção não pode se canalizar em discurso de ódio e repúdio contra um legítimo projeto de sociedade, articulado por uma visão de esquerda. Ganha corpo e terreno, no cenário político brasileiro, o mecanismo vitimário, com o sacrifício do bode expiatório. Na analítica de René Girard o grupo social acaba por identificar um culpado pelo caos e violência indiferenciada – o bode expiatório. Condenado e execrado pelo grupo, o bode expiatório passa a ser responsabilizado por todas as mazelas do tecido social. Toda fúria violenta e aniquiladora do grupo volta-se a este culpado, que passa a ser o único responsável pela desagregação e destruição da coesão social. A analogia com o momento político brasileiro é inevitável.
Toda tensão política e crise econômica é também mediada pela atuação da mídia e seu aparato. É preciso ponderar que a maneira com que tudo tem sido noticiado, acaba por desvelar um meticuloso processo de manipulação, alienação e construção ideológica. A dimensão da manipulação desdobra-se da própria definição da pauta jornalística e da estética de apresentação e narrativa das informações. A ausência de um contexto mais amplo e global, a exposição solta de eventos e fatos, a difusão livre de opiniões enviesadas, comprometidas com determinados setores da sociedade, porém apresentadas como análises criteriosas e isentas, compõem a perspectiva da alienação. O aspecto ideológico é desdobramento, justamente, da concepção de verdade e realidade que é ardilosamente divulgada. Para além de qualquer compromisso com a transparência, o que se vislumbra, em última instância, é a manutenção e perpetuação de um modelo de poder. Não há isenção nem neutralidade na divulgação de informações.
Diante de tão complexo cenário, cabe àqueles que militam em prol da construção de um Estado Democrático de Direito posicionarem-se, e até mais do que isso: inspirados em outros momentos tensos da história, manterem-se vigilantes, firmes e resistentes em salvaguarda da legalidade, contra o conservadorismo tirano e neoliberalismo quase ditatorial que se delineiam.
É preciso, para tanto, resistência e utopia: que as parcas e mitigadas conquistas sociais, contempladas mediante um longo e conturbado processo histórico, não sejam vilipendiadas e leiloadas no altar da austeridade e sacrifício do capital global. É preciso avançar na construção de outras referências sociais, a suplantarem a lógica neoliberal e os ditames do mercado global. É urgente a edificação de uma cultura balizada nos princípios da ética, do direito e da justiça. Para isso é fundamental a interlocução e o diálogo com os diversos atores sociais, historicamente comprometidos com a causa da justiça e do direito. É imprescindível retomar, meticulosamente, os estilhaços da furiosa desconstrução – recompor novas identidades, retomar os projetos, aperfeiçoar-se para os novos caminhos, dar as mãos para os muitos que lutaram e sobreviveram e pensar, desde já, uma nova era de direitos, construções partidárias, movimentos sociais. Pelo menos é o que se pretende deixar como legado e caldo cultural e político para as próximas gerações.
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GRUPO DE PESQUISA DIREITOS HUMANOS E JUVENTUDE
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE SÃO PAULO
CAMPUS CAPIVARI / PIRACICABA
18 DE MARÇO DE 2016.
Muito bom o texto. Parabens pela reflexao!