Ter saudade até que é bom
É melhor que caminhar vazio…
Peninha (“Sonhos”).
A condição humana contempla a possibilidade do sentir, da sensibilidade. Talvez a dinâmica de humanização guarde uma estreita relação com o refinamento da capacidade de sentir, a definir os relacionamentos e a sutil percepção do próprio mundo. Para viver mais plenamente as potencialidades do humano torna-se fundamental ampliar as faculdades sensoriais, alargando as perspectivas da sensibilidade. Sentir é humanizar-se.
Para o filósofo Nietzsche, o humano é conduzido por forças vitais representadas, mitologicamente, por Apolo e Dionísio. A dimensão apolínea desvela-se no primado da razão, da capacidade de ponderar e estabelecer critérios de equilíbrio e razoabilidade. Já as forças dionisíacas remetem ao que é impulsivo, desequilibrado, talvez até instintivo. Sob o signo de Dionísio encontram-se as potencialidades criativas do humano. Acompanhando Nietzsche, situaríamos a sensibilidade na interface entre o apolíneo e o dionisíaco. Se é preciso manter certo equilíbrio, é também fundamental uma boa dose de ousadia e impulsividade para se arriscar, lançar-se a uma existência caracterizada pela dimensão dos sentimentos.
Da sensibilidade brota o que há de mais profundo e essencial no humano. Os princípios e valores mais elevados, sem compromissos tácitos com as compreensões meramente racionais, alcançam concreta representação a partir de experiências de sensibilização.O amor, a compaixão, a solidariedade, a criatividade, a via da amizade, a dinâmica do perdão, a abertura à reconciliação passam, impreterivelmente, pela lapidação da capacidade humana de sentir, de se sensibilizar diante dos apelos do outro e do mundo.
Epicuro, filósofo grego, ensina que o sentimento de amizade pode possibilitar várias experiências de prazer, gerando felicidade. O prazer de desfrutar da presença do amigo, em uma convivência de cumplicidade. Mas, mesmo em um momento de ausência e solidão, o prazer proporcionado pelas lembranças das boas e belas vivências com o amigo querido. Se as cotidianas vicissitudes do próximo ou mesmo as grandes mazelas do mundo não tocam um coração já empedernido isso significa o embotamento do humano.
Toda frieza e insensibilidade podem denotar ausência de humanidade, sinais de um humano perdido, cindido e apartado de si mesmo. Em uma perspectiva pragmática, ceticamente calculada, a indiferença pode apontar para um caminho existencial aparentemente mais tranquilo, não sujeito a envolvimentos desgastante. Mas existir,em um sentido forte e contundente, implica envolver-se, tomar parte do, importar-se, sentir com e pelo outro, lançar-se para o mundo – por vezes, desconhecido – de outrem.
Na tradição judaica a expressão “Shalom,” normalmente traduzida por “Paz,” assume a forte representação do sentir com o outro. A palavra shalom contempla três dimensões fundamentais. A primeira consiste na sincera indagação de como o outro está. Nessa mesma linha, saudar com shalom também significa perguntar sobre as necessidades reais que o outro tem. Finalmente, shalom representa o comprometimento com o outro, enfatizando uma postura de autêntica solidariedade. Com acentuada beleza, a sabedoria judaica – o termo shalom aparece 239 vezes na bíblia hebraica – quer enfatizar a precedência do sentir, da sensibilidade humana.
Algumas vezes a dureza das relações, a intensa dor de uma perda querida ou mesmo o caos e a estupidez do mundo podem conduzir para uma existência indiferente,estranha, distante dos sentimentos, da forma plástica de sua manifestação no comportamento do homem, nas suas atitudes, representações, desejos latentes. Para não experienciar sofrimentos é melhor não se entregar aos sentimentos. A indiferença e insensibilidade se comporiam como uma espécie de couraça protetora, alçando o humano a um patamar de inacessibilidade, imputabilidade. A questão é que tal atitude não deixa de ser uma ilusão, conduzindo qualquer resquício de consciência ao embrutecimento e consequente desumanização.
A postura de sensibilidade porta-se como um modo de ser no mundo, uma maneira de reproduzir, recompor a própria existência a partir de todas as dores e alegrias possíveis.Construir-se como um ser sensível prepara o humano para se lançar a uma jornada existencial marcada por significativas experiências e belos encontros, como também por agudos prantos e dores latentes.
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Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia pela Universidade de Braga, Portugal, e professor no Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia/campus Piracicaba.
Saudações caro,
Permitir-se à experiência sensível é transmutar olhares, vivenciar a empatia em todos os aspectos. Acredito estarmos inaugurando um novo tempo da humanização, onde a inteligência emocional ganha maior abertura, tornando-se fundamental avançar nesse sentido.
Novamente o parabenizo.
Abraço fraterno.
Neriane
Reflexões que emocionam, que acrescentam, que tocam minha sensibilidade, querido Adelino.
Para mim os tempos andam muito complicados. O ser humano, parece, está perdendo seu norte, sua necessidade de viver valores e virtudes que melhorem sua qualidade humana e que mostrem sua preocupação com o crescimento do outro.
Seu texto me fez pesquisar o que escapava à minha compreensão mas, o que é mais importante, foi um bálsamo para minha alma.
Obrigada.
Abraço com muito afeto.
Shalom.
Feliz Páscoa.
Parabéns, Adelino. Refinar a sensibilidade parece imperativo nesses conturbados tempos de violência e hedonismo.