A Minha Páscoa.

A Minha Páscoa.

De um lado, a eterna estrela,

e do outro a vaga incerta,

meu pé dançando pela extremidade da espuma,

e meu cabelo por uma planície de luz deserta.

Sempre assim: de um lado, estandartes do vento…

– do outro, sepulcros fechados.

E eu me partindo, dentro de mim,

para estar no mesmo momento de ambos os lados.

 

Se existe a tua Figura, se és o Sentido do Mundo,

deixo-me, fujo por ti, nunca mais quero ser minha!

(Mas, neste espelho, no fundo desta fria luz marinha,

 como dois baços peixes, nadam meus olhos à minha procura…

 Ando contigo – e sozinha. Vivo longe – e acham-me aqui…)

Fazedor da minha vida, não me deixes!

Entende a minha canção!

Tem pena do meu murmúrio,

reúne-me em tua mão!

Que eu sou gota de mercúrio, dividida,

desmanchada pelo chão…

Cecília Meireles. Canção quase quieta

bouguereau-pieta

É tempo de páscoa. Lembranças difíceis de minha infância. Algo terrível estava para acontecer. Pecado rir. Tínhamos que estar tristes. Nem a espera dos ovinhos de chocolate me dava algum alento. Penosas vivências, sentimentos represados.

O tempo passou, os tempos mudaram. Cresci, amadureci, aprendi algumas coisas, esqueci outras. Esqueci o medo que me assombrava na quaresma. Conheci o Deus de luz, do amor e do perdão. A fé e a alegria com a ressurreição do Cristo ocuparam o lugar do medo. A redescoberta. A redenção.

Não tenho nem mínimos conhecimentos de teologia. Escrevo movida por minha fé, minha inquebrantável fé, com espontaneidade e emoção. Que me desculpem e corrijam os especialistas e entendidos, pelos equívocos e erros que aparecerem em meio às minhas reflexões.

Tempo de páscoa, Semana Santa: tempo de reavaliação, de oração, penitência, introspecção e recolhimento. De reconciliação comigo e com o outro, meu irmão. E, ainda, as indispensáveis intenções para crescimento espiritual que, peço a Deus, me acompanhem por todo o tempo que me leva até a próxima Páscoa. Difícil, imperfeita que sou. Mas, perseverar é preciso.

Na introspecção e recolhimento, podemos construir nosso santuário interior, onde a alma possa repousar em companhia de Deus. Como escreveu Adélia Prado, em Miserere:

“Ao minuto de gozo do que chamamos Deus,

fazer silêncio ainda é ruído”.

O silêncio da alma, o silêncio reverente, nos permite estar diante de Deus, nos tornando compassivos e reconciliadores. As planejadas mudanças internas, necessárias, se tornam possíveis e nos levam para novas verdades, para fortalecimento das crenças, nos fazendo melhores em espírito para enfrentarmos o mundo confuso, violento e contraditório em que vivemos. Estabelecemos boas estratégias para um melhor relacionamento com os homens e com o sagrado. A alma se aquieta em silêncio.

DelacroixSimbolicamente, essa dedicação à espiritualidade na Semana Santa  permite ao cristão renascer. Como o Cristo.

Nesses difíceis tempos que a humanidade atravessa, são muitos os problemas que nos atemorizam. Inútil e repetitivo enumerá-los. Ao refletir sobre os ensinamentos de Jesus, sua paixão, morte e ressurreição, me vem o forte sentimento de que Ele sofreu tanto por ser “diferente” – em postura, em palavras, no perdão e no amor. Ele incomodou. E o Filho de Deus Vivo foi julgado, condenado, crucificado.

É grande a intolerância pelo “diferente” – e o que insistem em tratar por “diferente”, queiram ou não os intolerantes, – existe no mundo, com suas especificidades, suas escolhas, suas necessidades, seus sentimentos, suas almas. Ele tem o direito ao mesmo espaço e respeito que todos. Os “outros” precisam acostumar seus olhos e suas almas com ele.

O Deus Vivo deu sua vida para a redenção da humanidade.

Nossa família se reúne a cada início de semana da quaresma para as orações e reflexões , “celebrando a Páscoa em família”, em torno do Círio da Família, a vela que congrega a família em oração.

Neste ano, a proposta está na meditação sobre as sete palavras de Cristo na cruz. Cito algumas delas, e compartilho sugestões para reflexão.

“Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).

O perdão , a tolerância, a compreensão, o amor por quem nos fere, são evocados por Cristo em seu pedido a Deus.

“Tenho sede” (Jo 19, 28).

O humano em Cristo, sentindo a sede, as dores, as misérias da humanidade.

E a sede de justiça que sentimos hoje. De justiça social.

“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mt 27,46).

A angústia da solidão, do abandono. E nossa crença no sacrifício de Cristo, submisso à vontade do Pai.

Quantas vezes procuramos nossa rota de fuga para essas situações de desamparo. Para onde nos levaria? Nesses momentos me valho da fé no Sagrado, e dos Cirineus. Eu os tenho. Muitos. Todos temos, não?

“Pai, em Tuas mãos entrego o meu espírito”(Lc 23, 46).

Estava concluída Sua missão de salvação da humanidade.

E, por fim, a alegria da Páscoa, a Ressurreição.

Voltam os cânticos de alegria – Gloria, Aleluia, Te Deum.

Rubens_Descida_da_CruzO Círio da Família é aceso durante nossas orações e reflexões. O neto caçula, com apenas um ano, também é posicionado, em seu carrinho, ao redor da mesa. Seus olhos brilham. Não demora muito e ele começa a bater palminhas. Ao final, continuam as palminhas. Ele nos olha. E os parabéns?

É quaresma mas, para evitar o choro de uma pura e inocente criança, cantamos o parabéns, e a vela, o Círio da Família, é soprada.

É a luz, a alegria da fé que venceu o medo.

Esperamos Seu perdão.

Estou certa, Ele nos dará.

Feliz Páscoa!

========================

Zilma foto

 

 

 

 

 

 

Zilma Bandel é pós graduada em Biologia. 

 

Imagens:

1 Pietá.  Bouguereau. 

2 Pietá. Delacroix.

3 Descida da Cruz. Caravaggio.

24 thoughts on “A Minha Páscoa.

  1. Querida Zilma
    Meus olhos me agradecem ao ler suas crônicas ! Você, com sua luz divina nos leva a refletir sobre a Quaresma, tempo de conversão, reconciliação, de muitas graças de Deus, de alegria espiritual, de crescimento na santidade de vida. “Tu és precioso aos olhos de Deus, és digno de estima e eu te amo”! (Is 43,3). Neste tempo temos a possibilidade de viver esta extraordinária experiência com Ele. E na glória da Ressurreição, vivamos como irmãos. O mundo está sedento deste gesto concreto.
    Uma feliz Páscoa a você, e a todos os seus queridos.
    beijos
    Célia

    1. Querida Célia.
      Você sempre gentil e generosa. E muito espiritualizada.
      Obrigada por sua leitura e tanta gentileza na apreciação.
      Seu comentário veio acrescentar sabedoria e conhecimento às minhas reflexões..
      Desejo a você e seus queridos, uma Páscoa santa e feliz.
      Beijo com afeto.

    1. Muito obrigada, Ivana.
      Você é uma leitora sempre fiel e generosa.
      Desejo a você e seus queridos uma santa e feliz Páscoa.
      Beijo com afeto e gratidão.

  2. Zilma, lindo texto, como sempre!
    Não deixe nunca de escrever. Usar e abusar deste dom que Deus te ofereceu, e que você
    sabe usar muito bem.
    Que Cristo Ressucitado nos faça amar mais ao próximo, ter mais fé, saber perdoar mais.
    Uma boa semana, semana santa! Feliz Páscoa para você e toda a sua linda família.
    Grande beijo.

    1. Querida Ana.
      É muito importante para mim sua leitura e apreciação, como sempre gentil e generosa.
      É tempo de reflexão sobre nossos relacionamentos, sobre a escolha de nossos caminhos, sobre nossa relação com Deus e o Cristo. Espero ter sido feliz, assunto profundo e delicado que é.
      Feliz e santa Páscoa para você e seus queridos.
      Beijo com afeto.

  3. “Bendito sejais pelo dons que nos dais…” diz o hino cristão.
    E que dom Ele lhe deu amiga Zilma. Com singeleza e delicadeza nos brinda, mais uma vez, com um texto lindo pontuado por suas reminiscências, que também me remetem as minhas. Que o Senhor ressuscitado fortaleça sua fé e o amor que une sua família linda, Uma feliz Páscoa a todos. Com carinho.
    Ariadne

    1. Querida Ariadne.
      Sua amizade e espiritualidade são importantes companheiras para minha vida.
      Muito obrigada por sua leitura e tanta generosidade na apreciação.
      Desejo a você uma feliz Páscoa.
      Beijo com afeto.

  4. Uma reflexão lúcida e pertinente diante dos inúmeros desafios e resistências que ainda temos em acolher a Vida verdadeira. Renascer, recomeçar, segundo Jesus Cristo. Nele, o referencial: ser “diferente”, como sinal de vida e ressurreição! Alegria, D. Zilma, pela sua inspiração profética! Grande abraço, com votos de uma frutuosa Páscoa!

  5. Querido Frei Moacyr.
    Sou muito grata ao senhor por sua cuidadosa leitura e apreciação.
    Suas palavras gentis e generosas me deixaram mais tranquila, por discorrer sobre assunto de que não tenho profundo conhecimento.
    Desejo ao Senhor uma santa e feliz Páscoa.
    Abraço com afeto e gratidão.

  6. Querida Zilma.
    Parabéns, como sempre , foi um grande prazer ler a sua crônica.
    Nesses momentos de tamanha inquietude e questionamento em que vivemos, com tanta indignação e decepção pelos nossos representantes, que esquecem do nosso povo carente e desamparado, somente uma crônica como essa para nos renovar o espírito e a esperança por tempos e pessoas melhores.
    Uma feliz Páscoa rodeada por seus queridos.

  7. Querida Rose.
    Leitora fiel de minhas crônicas, você tem sido uma das maiores incentivadoras para essa minha nova atividade.
    Nesta crônica, impossível não escrever de maneira espiritualizada. Com fé e alegria vivemos, na comunhão de nossa amizade, os ensinamentos e a ressurreição do Cristo.
    Beijo com muito afeto e gratidão.

  8. Zilma, amiga querida,

    para mim, foi o seu texto mais inspirado, que me tocou profundamente! Um texto tão leve, e ao mesmo tempo tão profundo! Uma reflexão admirável sobre o sentido da Páscoa nos dias de hoje! Gostaria de vê-lo amplamente divulgado,refletido, apreciado! Já estou fazendo isso, encaminhando para familiares e amigos queridos! Obrigada,minha amiga, por mais este presente!
    Que você e toda a sua querida família tenham uma Páscoa de muita paz e esperança no coração! Com as palminhas do pequeno Francisco!

    1. Miriam querida.
      Nem sei o que escrever depois de ler seu comentário repleto de gentileza e carinho.
      Nossa amizade, estou certa, se explica pela grande afinidade espiritual que temos. Distantes fisicamente, muito próximas no espírito, na fraternidade, na solidariedade.
      Sua vida e suas especiais formação e atividade acadêmicas acompanhei o tanto que pude e foram sempre referências importantes na minha vida. Sua fé também. Ela nos juntou nos bons e nos difíceis momentos.
      E, assim, a emoção e a fé nos unem através de minhas reflexões sobre a Páscoa.
      Obrigada, amiga, sempre, por tanto e por tudo.
      Muito amor, harmonia, muita luz, muitas bênçãos para sua Páscoa e para seus caminhos.
      Beijo com afeto.

  9. Zilma querida , o texto é perfeito, e retrata com profundidade o sentido da Páscoa perdão, reconciliação, e um profundo amor ao próximo.
    Uma páscoa de amor e paz a você e toda família, beijos

  10. Querida Ro.
    Fiquei muito feliz com sua leitura e carinho na apreciação.
    Você tem uma espiritualidade que emociona, e isto nos aproximou mais ainda nestas reflexões sobre a Páscoa.
    Espero que possamos estar mais próximas para que aproveite melhor de sua sabedoria e fé.
    Feliz e santa Páscoa para você e seus queridos.
    Beijo com gratidão e afeto.

  11. Querida Zilma Bandel,

    Agradeço por sua partilha sincera, tomada por sensibilidade e sabedoria. Seu texto cumpre a função de retomar e reforçar dimensões tão fundamentais da vida cristã, princípios que não podem ser esquecidos, na medida em que apontam os caminhos à convivência humana.

    Que a Páscoa renove toda a esperança. Com cordial amizade,

  12. Obrigada, professor Adelino.
    Já lhe escrevi outras vezes: sua leitura e apreciação – sempre generosa e gentil – são de grande valia para mim.
    Um olhar repleto de conhecimento e sabedoria é um incentivo para essa insegura colaboradora do Diário.
    Uma Páscoa com muito amor, fé e luz para você e seus queridos.

  13. Olá, Zilma:
    O poema da Cecília e o texto de sua autoria formaram uma peça de grande peso literário e, acima de tudo, um canto para que floresça em nós uma autêntica reflexão sobre o significado da Páscoa e dos tantos exemplos que esta figura iluminada de Cristo procura nos passar por tantas e tantas gerações. Nossa gratidão pelas suas palavras que tomo como sementes que haverão de brotar nos solos que reconhecem a sua qualidade . Em meio a tanto vazio de sentido da vida, diante desta avalanche de promiscuidade e safadezas, numa sensível falta de ética em quase tudo que diz respeito a organização da sociedade, é de grande importância repousarmos nossos ouvidos e corações em sentimentos assim (mais que nas palavras) para que nossos corações tenham a devida compreensão e tolerância fazer renascer a esperança em uma sociedade melhor.
    Um grande abraço a você, aos seus entes queridos (Paulo, Claudinha, Renata, Clarinha e Pedro)
    Newman

    1. Querido amigo Newman.

      É um privilégio tê-lo como amigo, como leitor, e ser presenteada também com comentário tão generoso.
      Sou muito grata a você, exemplo e referência importantes para mim e nossa família como ser humano, como professor e como criatura de intensa e profunda espiritualidade.

      Precisamos, sim, impedir que o vazio existencial, a falta de ética, de solidariedade, a dificuldade de aceitação do outro com suas peculiaridades e sua alma, e a falta de valores sólidos de cidadania contaminem a geração que está chegando e vai estar à frente de nosso país, de nosso povo, das nossas famílias.
      Cristo nos deixou, com seus ensinamentos, tudo o que precisamos para que com a alegria da fé e Sua luz possamos renascer a cada dia, renovar e fortalecer nossa esperança em melhores dias. Ele, com sua luz, me fortalece na fé. E que assim seja sempre.

      Sou privilegiada também por ter um editor muito sensível e competente. Pela primeira vez deixei para o Alê Bragion a “abertura” da crônica. A escolha do poema da Cecília é mérito dele. Fiquei encantada com a beleza do poema e a qualidade das ilustrações. E isso me preocupou bastante porque, com certeza, todos esperaram um texto à altura de tanta beleza. Enfim…Aprendo muito com o Alê e sou muito grata a ele sempre.

      Um abraço com muito afeto e gratidão.

  14. Querida Zilma

    Sempre aguardo ansiosa por suas crônicas…mas como gosto de lê-las com tranquilidade ,só hoje o consegui.Que texto mais lindo ,esse da Páscoa.A cada texto você nos surpreende.Adorei “os Doutores da Alegria”(em momento especial em minha vida),mas esse se supera em tudo:espiritualidade,fé ,crença,esperança,compreensão,sentimento e significado da Páscoa.Realmente,Páscoa é momento de renovação:de fé,de compreensão,de perdão(“perdoai-os;eles não sabem o que fazem”),e,como você mesma diz,de reflexão e recolhimento,de reencontro consigo mesmo.Que todos,nós,imperfeitos TODOS,possamos reencontrar no silêncio com Deus,maior tolerância,maior humildade e maior amor por nossos irmãos.Você comove,você emociona,você sensibiliza,todos que, afortunados,têm o prazer em ler suas crônicas.Espero também,renovar em minha alma,todos esses sentimentos essenciais para viver com Cristo.Que Deus a abençoe mais e mais,para podermos desfrutar sempre de todo essa sua fé,esperança,espiritualidade,através desses textos maravilhosos…um beijo no coração de quem a ama muito e a admira mais ainda.Feliz Páscoa

    1. Querida Dida.

      Você sempre me emociona com sua amizade, com sua generosidade.
      Muito obrigada por ser minha leitora fiel, e por tanto me incentivar. Sou muito insegura por não ser formada em letras, por não saber nada sobre a técnica de escrever. Cada texto que envio gera em mim certa tensão, até que possa sentir a repercussão, a aceitação das minhas crenças, das minhas angústias. De algum modo elas sempre aparecem no que escrevo. Escrever para mim é uma purgação, e um encontro comigo e com o sagrado que me fortalece a alma e ilumina meus caminhos.
      Esse tempo de quaresma e Páscoa nos favorece para refletirmos, para nos renovar, para ressuscitarmos a cada dia. Achei que invadi um terreno que não domino – o da teologia. Mas as sempre sábias palavras do Frei Moacyr e do Prof. Adelino, com seus olhares de profundos conhecedores da teologia e filosofia, me tranquilizaram. Minha fé de leiga me salvou…
      Beijo com muito carinho e gratidão, amiga. Saudades.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *