Narrar, contar uma história, é uma das atividades mais antigas do ser humano e cumpre a importante função de dar sentido ao imediatamente vivido e experimentado. As narrativas mitológicas buscavam trazer segurança para o homem que se via num mundo cheio de perigos e surpresas. A narrativa do mito trazia algum conforto e, em certa medida, pretendia garantir uma estabilidade, uma possibilidade de previsão, dando aos homens a sensação de que tinham algum controle sobre o que acontece, a realidade.
Desde então o ser humano foi aprimorando suas narrativas e a constante observação dos acontecimentos fez com que seus discursos buscassem mais do que coerência interna e verossimilhança. No momento em que surge a filosofia, a coerência interna das narrativas míticas já não satisfazia a busca humana por uma compreensão do vivido. O germe do pensamento científico que brotava com os pré-socráticos ansiava pela verdade, buscava construir suas narrativas a partir dos fatos, dos acontecimentos e não mais aceitavam causas externas à physis, a natureza, como explicação. Deuses e heróis estavam muito distantes para explicarem o que se experimentava imediatamente. As belas narrativas que antes enchiam os ouvidos e acalmavam os homens já não eram suficientes. Os olhos atentos ansiavam por causas e explicações imanentes aos acontecimentos dos quais se sentiam reféns.
O surgimento e desenvolvimento da filosofia e da ciência, bem como o desenvolvimento de outras formas de discursos, principalmente o argumentativo, nunca ameaçou a continuidade e o sucesso das narrativas. As narrativas literárias, ficcionais ou não, sempre desempenharam um papel muito importante no processo de humanização pelo qual todos nós passamos. Grandes nomes da literatura foram magistrais em nos conduzir por experiências e terras tão distantes e nos proporcionar a vivência de situações de outro modo jamais experimentadas. E falo por mim, pelas tantas janelas e portas que me foram abertas por Érico Veríssimo, Maria José Dupré, José Mauro de Vasconcelos, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Antonio Lobo Antunes, Mia Couto, Emily Brontë, entre tantas e tantos outros. Sinto que carrego em mim um pouco de Clarissa, de Ana Terra, de Zezé, de Dora, de Pedro Bala, de Miguilim, de Heathcliff e de Catherine. Tudo isso para dizer que as narrativas sempre tiveram seu lugar nesse mundo.
O problema é quando a narrativa se torna arma política. Pior ainda quando agentes políticos passam a se dedicar a construção de narrativas ficcionais. E piora muito quando nos vemos, de repente, bem no meio de uma “guerra de narrativas”. Pelo menos é assim que muitas pessoas estão se sentindo ultimamente. Poderíamos dizer que “a guerra de narrativas” é uma das narrativas do momento que vivemos. Agentes públicos e políticos de diferentes campos ideológicos não cansam de gritar aos quatro ventos que o que dizem seus opositores não passa de uma narrativa que pretende sequestrar a realidade. Para piorar o quadro, temos que nos haver com as fake news e a pós-verdade. É bem verdade que gênios da literatura já nos alertaram sobre a possibilidade dessa realidade pra lá de distópica que vivemos hoje. Talvez, por algum tempo, tenhamos nos descuidado das narrativas ficcionais, falhamos com as novas gerações que passaram pelos bancos escolares sem ler Admirável mundo novo ou 1984.
Como nos lembra Hannah Arendt mais de uma vez em seus textos, “a veracidade nunca esteve entre as virtudes política, e mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes assuntos.” Segundo a autora, a negação deliberada dos fatos, que seria a capacidade de mentir, guardaria conexões diretas com a ação, a capacidade de mudar os fatos. Ambas teriam a mesma origem, a imaginação.
“Não é de nenhum modo natural podermos dizer “o sol está brilhando”, quando na verdade está chovendo (a consequência de certas lesões cerebrais é a perda desta capacidade); a rigor isto indica que, apesar de estarmos bem equipados para o mundo, tanto sensual como mentalmente, não estamos adaptados ou encaixados a ele como uma de suas partes inalienáveis. Somos livres para reformar o mundo e começar algo novo sobre ele. Sem a liberdade mental de negar ou afirmar a existência, dizer “sim” ou “não, nenhuma ação seria possível, e ação é exatamente a substância de que é feita a política” (Arendt).
Sempre que alguém se propõe a construir uma narrativa não esconde seu desejo de dar sentido ao imediatamente vivido por ele ou por seu grupo ou, no mínimo, para algum grupo, seja o narrador-autor parte integrante desse grupo ou não. Ao livremente criar uma narrativa, que se distancia do imediatamente vivido, mas que, de algum modo, se propõe a dar sentido a ele, o narrador-autor também transparece um desejo de que os acontecimentos fossem de outro modo, ou seja, transparece seu desejo de mudar a realidade. Numa utopia, por exemplo, pretende-se criar uma realidade perfeita, livre dos defeitos e problemas que tornam, por vezes, a realidade dura e difícil de ser encarada. Muitas obras ficcionais se propuseram a criar realidades mais palatáveis, mais agradáveis se comparadas com os fatos que compõem nossa realidade imediata. Outras narrativas levaram ao extremo a dureza dos fatos, extrapolaram todos os limites da realidade e nos lançaram em futuros distópicos como a República de Gilead. Enquanto tudo isso se passa no campo da literatura, nenhum problema. Problema temos quando políticos, jornalistas e influencers em geral passam a criar realidades paralelas e as oferecerem ao grande público como a versão oficial dos fatos, ou ainda, com uma das possíveis versões dos fatos. Diferentemente do que podemos pensar, essa prática não é produto dos nossos tempos, das redes sociais e etc. Podemos dizer que a internet, de um modo geral, alavancou uma prática que, segundo Hannah Arendt, já era bastante utilizada na segunda metade do século XX. Ao tratar do famoso caso dos Documentos do Pentágono, a autora fala da “política da mentira.” E, segundo ela, o sucesso da política da mentira depende do fato de o mentiroso ter uma clara ideia da verdade que está tentando esconder, ou seja, caso o mentiroso, o narrador-autor, se convença de sua própria mentira, tome a sua narrativa como sendo a própria realidade, sua estratégia estaria condenada ao fracasso.
“No domínio da política, onde o sigilo e o embuste deliberado sempre tiveram um papel importante, o auto-embuste é o perigo por excelência; o impostor auto-enganado perde todo o contato com o mundo real, que continuará importunando-o, pois ele pode tirar sua mente dele, mas não pode tirar seu corpo” (Arendt, 2017, p.39).
No Brasil do século XXI, membros de diferentes posições ideológicas parecem ter se perdido no ‘auto-engano’ e são agora prisioneiros de suas próprias realidades. Outros, mais espertos, que ainda são capazes de reconhecer, de si para si mesmos, o limite entre a realidade e as narrativas ficcionais, ainda reconhecem as diferenças entre a verdade e a falsidade, se apegam a proclamar a ‘guerra de narrativas’ como sendo nossa realidade imediata, sutilmente contribuindo para apagar a linha que separa as narrativas ficcionais daquelas comprometidas com os fatos, colocando-as no mesmo saco, criando na massa a sensação de que já não se pode confiar em nada. Ou ainda pior: que já não é possível separar a verdade da mentira, o real do ficcional. Se vivemos uma guerra de narrativas, se todas as narrativas têm o mesmo peso, impera a lógica de que é verdade aquilo que se coaduna com minhas crenças, com o meu desejo. O discurso da ‘guerra de narrativas’ tem reduzido tudo ao campo das possibilidades da imaginação e do desejo. Num mundo de crise – de violência, de insegurança, de desemprego e corrupção -, é compreensível o desejo de ‘mudar tudo que está aí’. No entanto, essa mudança, ao invés de se dar no campo da ação, tem se dado apenas no campo da imaginação. As fake news estão aí para alimentar nossa velha esperança de dar sentido ao imediatamente vivido, as narrativas que viajam pelo WhatsApp mudam o que está aí, nem que seja apenas na mente de milhares de pessoas desalentadas e já sem condições de separar as narrativas oferecidas no varejo. Mudam o que está aí para deixá-lo mais adequado aos meus desejos.
Em meio a esse caos cotidiano que vivemos, as revelações feitas pelo The Intercept Brasil na última semana têm o mesmo potencial que a revelação d’Os documentos do Pentágono em junho de 1971. Como observa Arendt, “na medida em que a imprensa é livre e idônea, ela tem uma função enormemente importante a cumprir e pode perfeitamente ser chamada de quarto poder do governo” (Arendt, 2017, p.46). A mais essencial liberdade política, diz Arendt, “o direito à informação não manipulada dos fatos” é o que nos garante a liberdade de opinião, pois sem conhecer os fatos, a liberdade de opinião não passa de uma farsa cruel. Nos últimos anos o Brasil foi (artificialmente) dividido entre duas narrativas: a do combate à corrupção, da Lava-Jato por um lado e, de outro, a de perseguição política sofrida pelo PT. De ambas as partes, os excessos e o desprezo pelos fatos foram parte importante da estratégia narrativa adotada. O resultado de anos dessa disputa foi sentido nas urnas em 2018. Grande parte da imprensa nacional contribui e muito para que uma dessas narrativas assumisse o lugar de versão oficial dos fatos nos jornais diários. Agora temos a oportunidade de rever essas narrativas. É bem verdade que as revelações do TIB pendem para o lado da narrativa do PT. A imparcialidade do então juiz Sérgio Moro agora não é apenas parte de uma narrativa. Os fatos que comprovam essa parcialidade e que, manifestamente, colocam sob suspeição o juiz, no entanto, nada dizem acerca da inocência total dos envolvidos nos casos em questão. Não se prova com isso a inexistência de corrupção durante os governos do PT, envolvendo membros do próprio partido e de tantos outros, como PP, MDB, PSDB, DEM, PTB, PR, etc. A depender de para onde as paixões conduzirão os atores públicos e políticos, poderemos perder uma boa oportunidade de corrigir o rumo que o país toma e buscar resgatar a importância dos fatos e das verdades factuais, principalmente por parte da imprensa brasileira.
Que os políticos desde sempre estiveram interessados em criar narrativas e que continuarão a fazê-lo, é um fato de menor importância nesse momento. Mas que a imprensa, que jornalistas profissionais, também se embrenhem por esses atalhos, isso não pode jamais ser aceito. O compromisso do jornalismo deve ser sempre com os fatos, na maioria das vezes seu trabalho é o de relatar, de apresentar provas do que relata, de argumentar com base nos fatos. Quando se propõe a narrar, sua narrativa deve se ater às verdades factuais. Ao cruzar esse limite, a imprensa e os jornalistas fazem um desserviço à democracia e aos cidadãos.
*******
( Obra citada: Arendt, Hannah, Crises da República, São Paulo: Perspectiva, 2017.)
Francine Ribeiro é filósofa e professora do Instituto Federal campus Capivari.