Luxo, ócio, excesso de comida, tudo na vida enjoa (em especial, se você estiver em um navio de cruzeiro, contemplando uma tormenta noturna em alto mar). Lá fora, a procela capricha: ergue metros de ondas negras com espuma branca nas cristas. Raios e relâmpagos iluminam o espetáculo. Cambaleante, o transatlântico prossegue aos trancos. Do lado de dentro, milhares de almas nauseadas percebem-se passageiras. Rezam pro remédio contra enjoo fazer efeito rápido. Pensam no Titanic e se perguntam “Quem precisa de iceberg com um mar assim?”
Na manhã seguinte, o navio chacoalha menos, a tempestade quase passou e a comilança recomeça. Pratos do tamanho de pequenas bandejas saem do bufê self-service, com enormes pilhas de frios, queijos, pães, omelete, panquecas, salsichas, pizza, doces, bolos e frutas. Tudo isso junto, no mesmo prato-bandeja, no café da manhã. Um pratinho desses por pessoa ainda deixa espaço para um pouco de chá, leite, café, iogurte, suco de fruta… Só as crianças reclamam. Querem refrigerante.
Que Deus abençoe os recreadores dos cruzeiros! Eles tomam conta das crianças enquanto os pais enchem a cara e paqueram na piscina. Levam-nas pra algum canto divertido, fora do caminho dos idosos. Como é multifacetada a terceira idade a bordo! Playboys de 80 anos, periguetes sexagenárias… Existem até senhores e senhoras distintos à moda antiga. O problema é que distinção e sobriedade não combinam com o luxo naval.
Tudo no navio é exagero: muito espelho, muitas luzes, estampas chamativas e cores fortes nos carpetes que revestem do chão ao teto. Caluniadores diriam que decoração segue o estilo “motel chique”. As cabines, no entanto, desmentem a difamação. Comparados com as áreas públicas, esses casulos beiram a elegância. Sem camas redondas ou espelhos no teto, só exageram na falta de espaço, que torna desconfortável a prática de acrobacias eróticas em equipe.
A decoração dos navios de cruzeiro, não por acaso, lembra muito mais a dos hotéis cassino de Las Vegas. Há cabines luxuosas, mas o ideal é que os hóspedes saiam delas e gastem dinheiro a bordo, nos bares, restaurantes, butiques, joalherias, lojas e, é claro, no cassino, no boliche, no fliperama, nos bingos… Ah, os bingos! Quanta gente, que não aposta nem cinco centavos de dólar nos caça-níqueis (porque “isso vicia”), paga, alegremente, dez dólares por uma cartela de bingo! E compram pras crianças também, “porque bingo não é jogo, é brincadeira de igreja.”
Como somos religiosos a bordo! Reza-se no cassino, na tormenta, na hora de pagar as contas e, acima de tudo, implora-se aos Céus para que alguma peça de roupa ainda nos sirva quando desembarcarmos. Um dia a ciência provará que a brisa marinha encolhe fibras têxteis. A ventania em alto mar é um iceberg agressivo tramando o naufrágio de nossa elegância.
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Carla Ceres é escritora
É isso aí! Muito luxo de lixo, pra fazer o povo gastar numa viagem que é pra ser “all inclusive”.
Eu saí do cruzeiro com uma conta de 4 dólares, referente a duas águas minerais, compradas antes do camareiro me dar a dica sobre o gelo. (Você lembrou???)
A parte da tormenta é que matou o glamour… mas que bom que você voltou!
Beijooo
Ai, que coisa! No meio da baderna toda, nem me lembrei da dica do gelo, Bel. E só voltei a me lembrar agora que você falou. 🙁 Mas muitas outras dicas suas foram bem aproveitadas. Valeram muito. Beijos e obrigada!
Ufa, Carla! Só em ler passei mal… Amodoro meu simples conforto e calmaria… Tempestade? Titanic? Longe de mim, please… Até porque de piriguete não tenho nada… O bom é tê-la conosco e deliciarmo-nos com suas crônicas tipo: “a vida como ela é…” Seja bem-vinda!
Bj. Célia.
Obrigada, Célia! Verdade, você não é nada periguética. Se estivesse num navio, faria parte do seleto grupo das bonitas, distintas e cultas. Beijos!
Só você, Carlinha, para exprimir com esse seu jeito peculiar, a dor e a delícia que é viajar!
bjos
Ivana
Obrigada, Ivana! Li, na Gazeta, e gostei muito da sua história com os bichos, na África. Vou ver se está aqui no Diário do Engenho, também e deixo um comentário. Beijos!
Você come tudo o que vê, engorda e a brisa marinha é que leva a fama, não é?…Parabéns pela crônica, Carla. Beijão!
É que a brisa marinha passa pelos restaurantes e traz perfume de comida. 🙂 Obrigada pelo carinho, Shirley! Beijos!
Olá prezada Carla, e que tudo esteja bem contigo!
E como sempre que posso, cá estou eu, lendo e, bem, o caso é que se eu ainda tinha um pouco de vontade de algum dia viver esta loucura que deve ser um passeio em algum navio, penso que diminuiu ainda mais.
Nós humanos temos este enorme defeito, exageramos em tudo, até no sofrimento!
Mas não é o caso dos textos que compartilha com os amigos cá, sempre textos bem elaborados e que expressam inúmeras situações que tantos vivem e eu a parabenizo por mais este. Gostei também da ilustração do texto, você sempre fazendo acertadas escolhas, falando sério com doses de humor, perfeita!
E assim agradecido me vou deixando meu desejo que você tenha em teu viver a felicidade deveras intensa, obrigado pelas visitas, abraços e até mais!
O Leroy e eu lembramaos muito de você nessa viagem, Sotnas. Estivemos em alguns portos e ficamos boquiabertos com a quantidade de containers e com os equipamentos enormes que usam para movê-los. É um mundo fascinante para nós que conhecemos pouco. Obrigada pelo carinho! Abraço!
Carla querida
Sempre avisei aos mais próximos não me convidarem para esse passeio… muito menos para ficar em hotéis fechados e luxuosos, engordando. Quem sabe um dia, né? Por enquanto prefiro a caminhada das obras de arte!
um abraço!
Também prefiro bater perna em viagens culturais, Andrea. Ficar presa engordando gera crônicas revoltosas. 🙂 Beijos!
Olá, Carla
Fiz duas viagens grandes (cerca de um mês, cada) em primeira classe especial (à profissão do marido o devo…)e revi-me nesta sua belíssima crónica.
As boas-vindas dadas por uma tempestade não devem ter tido graça nenhuma. Lembrei-me de quando atravessei o Cabo da Boa Esperança em que só podíamos caminhar agarrados às paredes, oscilando (os poucos que não recolheram aos camarotes).
Achei excelente a sua crónica, e espero que os tecidos dos seus modelitos sejam à prova de “encolher devido à brisa marítima”, e continuem a servir-lhe lindamente 🙂
Beijinhos
Você atravessou o Cabo da Boa Esperança, Mariazita!? Também quero! Descobri que não passo mal com tormentas e, mesmo que passasse, seria um enjoo histórico, épico, geograficamente importantíssimo. Meu tataravô português era capitão de navio. Pelo menos essa é a lenda na família, o que, para minhas pretensões, dá no mesmo. Acredito que não marear esteja no meu sangue. 🙂 Levei roupas amplas. Eu já desconfiava das intenções icebergcas da brisa. Beijos, querida, e muito obrigada pelo carinho!
Ainda não tive vontade de fazer uma viagem de navio,Carla. Mas embarquei na sua história, apetitosa e divertida.
É possível que se eu já tivesse feito o monte de passeios legais que você já fez pelo mundo, eu quisesse sim viver uma experiência dessa.
Que bom que a ameaça de naufrágio foi só à elegância!
Beijo! 🙂
Que bom que gostou da crônica, Regina! Ainda tem muitos passeios legais que eu gostaria de fazer. Por exemplo, a Itália, que você conhece de trás pra frente. Beijos!
Carla, Carla,
Wow, a parte da tormenta só fez aumentar o pânico que imagino certamente ter desse tipo de aventura ! Não sendo problema pra você, sorte grande !
Bem vindos de volta em terra firme !
Safyra
Valeu, Safyra! Beijos!
Não tenho vontade de fazer cruzeiros desse tipo, agora, viajar de barco é maravilhoso. É outra coisa, o contrário desse luxo e esbanjamento.
Concordo. Já estive numa réplica da Niña, uma das caravelas de Cristóvão Colombo. Gostei muito. Obrigada pela visita e o comentário! Abraço!
Excelente texto. Que bela e competente descrição. Parabéns!