Vocação: felicidade como escolha indubitável

Se compreenderdes isso e o praticardes, felizes sereis.

(Jo. 13, 18)

 

 

Em um tempo no qual os sonhos e os anseios são ceifados em nome de sucesso, poder e riqueza, torna-se imprescindível e urgente retomarmos a perspectiva da vocação, a abrir para a existência caminhos muito mais profundos e elevados, edificados a partir de criteriosas e autênticas escolhas. De fato, falar em vocação talvez pareça abordar um tema fora de contexto, demode, em uma sociedade que propõe e concebe a vida como composição de escolhas práticas, tendo em vista conquistas meramente objetivas.

Neste ponto, é freqüente ver pessoas – especialmente infantes – definindo a profissão apenas pelo retorno material (leia-se salarial) ou mesmo pela empregabilidade que determinada área profissional contempla. Escolhas assim assumem a ilusão de serem mais lógicas, fáceis e promissoras. Ora, pautar a vida em escolhas marcadas exclusivamente pelo que aparenta ser imediato e pragmático pode consistir em deixar escapar o sentido e a intensidade que a existência pode alcançar.

Tradicionalmente, o tema da vocação faz menção e alude a um chamado de origem transcendental. Neste caso, o vocacionado apenas teria que responder positivamente a um projeto que o ultrapassa, pois contempla uma relação com o Mistério. Mas a questão da vocação não deve ser restringida a uma perspectiva de fé religiosa ou compreensão mística da dinâmica da vida. A vivência da vocação alcança um sentido muito mais complexo e aberto. O tema da vocação recoloca em pauta o problema do sentido da vida, ou melhor, da atribuição de um sentido para a vida.

A primeira vocação consiste justamente no próprio milagre da vida – o dom de estar vivo contrariando e suplantando todas as adversidades que concorrem contra a vida (violência, miséria, devastação ambiental, aborto etc). Nesta perspectiva, a vida em si mesma, independente do que fazemos dela, já deve ser compreendida como superação. Somos chamados à vida, que pode se descortinar e se compor em possibilidades de existência, para além da dimensão biológica. A vocação é um chamado e um convite, requer de nós uma resposta, que deve nascer e brotar do mais profundo de cada um. Definitivamente, não nascemos com a existência previamente determinada, com um destino pronto. Ao nascer fazemos a irredutível experiência da liberdade. É na liberdade que vivemos o desafio de construir a vocação.

Sendo a existência uma experiência única e aberta, é preciso, então, vivê-la com toda intensidade. Mas as sociedades contemporâneas, de maneira geral, reduzem as possibilidades do existir, ao definirem a felicidade como mera aquisição de bens de consumo e conforto, levando os indivíduos a tomarem suas decisões existenciais a partir de tais reverenciais. Nesta ótica, intensidade passa a ser sinônimo de ausência de critérios, de ações banais, fúteis e imediatistas. Sobra então decepção, angústia e vazio, consubstanciando o sentimento de depressão, que emerge da própria ausência de sentido existencial, a configurar um quadro de profunda alienação. É, de fato, inaceitável, tanto do ponto de vista racional quanto pela perspectiva da fé, gastar a vida de maneira banal e vazia, reduzindo a existência à boçalidade.

Construir a existência sob a perspectiva da vocação, a nortear as escolhas, denota compreender que a vida não se esgota na dimensão meramente objetiva. Adquirir coisas tem a sua importância e o seu lugar, mas tão somente como meio, nunca como finalidade. O humano é portador de aspirações bem mais profundas e intensas, a ultrapassarem a mera materialidade. A realização humana, a almejada felicidade, somente se torna tangível quando a vida se encontra e abraça a projeção do humano no campo da plena liberdade, na fruição da existência. Talvez as grandes vocações, em um sentido de definição de aspirações, sejam à felicidade e à liberdade.

É preciso que nossas escolhas – inclusive no campo profissional – contemplem o que nos realiza e nos torna aptos, prontos para a felicidade única, para a liberdade de decidir, independente das necessidades prementes. Por traz de cada escolha, deve se alojar, projetar nos anseios e desejos particulares a sincera procura pela felicidade que, definitivamente, não se esgota de maneira prática, objetiva e rotineira. Estar vocacionado, realizar aptidões, marca a possibilidade do humano em se recriar, estabelecer critérios, transformar a si e a natureza, reafirmar a humanidade através do sentir, pensar, criar, tomar a escolha como critério que só pode lhe pertencer.

O Autor:

 

Adelino Francisco de Oliveira é mestre em Ciências da Religião. Doutorando em Portugal, estuda o Evangelho de João. É professor de Ética e Teologia no Colégio Salesiano Dom Bosco e Faculdade Salesiana Dom Bosco de Piracicaba.

No Diário do Engenho, o autor escreve sempre na segunda quarta-feira de cada mês. 

 

11 thoughts on “Vocação: felicidade como escolha indubitável

  1. Oi Adelino! este texto está muito bom! e poderia ter me ajudado no trabalho sobre “Existência e Projetos”, mas eu já fiz.
    Até amanhã!

  2. Querida Raquel,

    Pensar em projetos para a existência requer sensibilidade para discernir sua vocação… O fundamental é escolher sempre na liberdade.

    Esteja bem!

  3. Belíssimo texto professor Adelino! Longe de ser demode, esta é uma discussão muito importante em tempos onde coisas, objetos, pessoas, vidas parecem descartáveis. Além é claro de nos lembrar que a beleza da vida é vivê-la com intensidade! Abraços, Maíra.

  4. Prezada Maíra Negri,

    Sua interlocução destaca, precisamente, o ponto fundamental a tocar a intensidade que deve tomar a existência… em um equilíbrio entre materialidade e interioridade.

    Esteja bem!

  5. Quero parabenizar tanto o autor quanto o próprio espaço virtual Diário do Engenho pelos textos de elevadíssima qualidade e conteúdos profundos. A cada mês espero por uma nova reflexão. Tenho divulgado este importante espaço de difusão cultural a meus contatos. Parabéns a toda a equipe, particularmente ao professor Adelino.

  6. Prezado Donizete,

    Agradeço por suas considerações. Espero, de fato, que as reflexões sejam oportunas, inclusive para repensarmos a sociedade e nossas relações.

    Esteja bem!

  7. Caro Mestre Adelino!!!

    Parabéns por mais esta aula. Encerramos que neste final de semana o mês das vocações. Continuemos perseverantes na fé, e aqueles criticos que não tem embassamento nem conhecimento do sagrado e são “pedra de atraso”, sejam nosso incentivo e estimulo para a pedra fundamental.

    Esteja bem!

    1. Prezado Naldo,

      Agradeço por suas palavras de apoio e incentivo… Mas acredito que o processo de debate sempre nos ajudará a crescer…

      Esteja bem!

  8. Caro Adelino,

    parabéns por mais este texto maravilhoso! Gostei muito!
    Este tema é muito importante na vida de todos nós.
    Afinal, fazer boas escolhas é algo que exige muita reflexão sobre diversos aspectos, não só o materialista, que hoje é a base de tudo.
    Atualmente, a atribuição de um sentido para a vida é algo complicado!
    Adorei sua abordagem!

    Esteja bem!

    1. Querida Thaís,

      É bom saber que o texto acontribuiu com suas reflexões… Nossas escolhas acabam por nos definir, então devemos escolher com plena liberdade.

      Esteja bem!

  9. Adelino, tomo a liberdade de, mesmo tardiamente, fazer e partilhar uma breve reflexão a respeito do bem trabalhado tema da vocação.
    Para o significado de vocação, tem-se que é um “Ato ou efeito de chamar (-se);
    Tendência ou inclinação; Apelo; Aptidão natural; talento”
    Já aptidão seria “Disposição natural ou adquirida para qualquer coisa; capacidade”.
    Há um aparente sombreamento nos dois significados, apesar da face “transcendental” envolver mais o conceito de vocação como algo que emana do exterior, fora do domínio, algo a que se responde. Ao passo que aptidão pode ser mais vinculado a algo com que o ser se identifica, que está latente e se desenvolve, algo que se descobre possuidor em determinado momento e que pode passar toda a existência sem se manifestar.
    Temos, sim, como aspiração natural a felicidade e a liberdade. São vocações no sentido de que somos convidades a responder à vida com uma atitude positiva e independente. Mas sem jamais vislumbrar esses dois alvos como uma coisa estanque, e sim, como processos no qual o próprio objeto se concretiza, e somente se concretiza como vivência desse mesmo processo.
    As aptidões podem ser o motivo das escolhas realizadas nesse caminho. Da mesma forma que elas podem ser a manifestação dos questionamentos suscitados pelas escolhas feitas, ou pelas circunstâncias que resultam das experiências vividas.
    A vocação é continuar dando um sentido à vida. O instrumento é aprender a pintar com os pés, e produzir maravilhas que jamais tinham sido imaginadas antes do acidente…
    Abraço.
    João Batista

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