Uma passagem personalizada – por Suzane Alaíde

– Dona Adélia, por onde posso começar meu serviço hoje?

– Ih! Vamos ter de esperar um pouco.

Era dia de mudança. Tudo encaixotado, esperando o caminhão para ser levado para a tão sonhada casa nova. Depois de quase dezoito meses de espera, eu mal podia acreditar no que estava vivendo.

Nas idas e vindas por entre as caixas e bagunças, tentando facilitar o trabalho dos moços,  vi uma sacola plástica que mais parecia lixo. Na minha obstinação, fui pegar  para levá-la até a lixeira. Já a caminho, resolvi conferir o seu conteúdo. Abri-a com a displicência dedicada ao que se leva ao lixo, mas fiquei paralisada. O que era aquilo?

Como estava dentro da garagem, longe da claridade do sol, saí para poder ter certeza de que era mesmo o que estava achando que era. Fiquei estática ali mesmo no sol, com  a sacola semi-aberta na mão esquerda. O que elas estavam fazendo ali? Onde eu as havia guardado que apareceram do nada?  O tempo parou ao meu redor e as galochas, o conteúdo surpreendente, transportou-me a minha infância, distante algumas décadas. As galochas, bem surradas de tanto uso, eram de número 33. Tinha uns oito ou dez anos, eu já não me recordava com precisão. Eram pretas, de bico um pouco fino e dois botões de pressão.

Recife, apesar de estar no nordeste brasileiro, sempre foi muito chuvoso. Galochas, capas, sombrinhas e guarda-chuvas povoavam minha memória. Contudo o que mais me encantava eram mesmo as galochas… Não sei se minha paixão se iniciou pelo nome: GALOCHA. Que chiado gostoso de falar!

Depois, eram charmosas e faziam parte de toda a parafernália de um belo dia de chuva. As sombrinhas também foram alvo da moda: de bolas, transparentes, retas, abobadadas… Eram um belo complemento da indumentária feminina para um dia chuvoso.

– Dona Adélia, o caminhão está encostando.

A voz alta da Zeza me trouxe de volta ao dia da mudança. Dali em diante foi só correria, cuidados com os pertences, decisões de última hora. A sacola levei para o carro.

A noite chegou. A brisa fresca da noite trouxe a alegria de ver o sonho realizado. Contudo, o trabalho que aquelas caixas espalhadas pela casa inteira anunciava dava cansaço. Entreguei-me. Uma noite de sono me deixaria pronta para os desafios da arrumação.

Dia novo. Casa nova. Trabalho demasiado. Zeza foi uma fiel escudeira. Sua presença e trabalho eram meu alento.

Quinze dias quase sem sair de casa, entregues ao deleite de, assim como um joalheiro, escolher o lugar ideal para objeto. Tudo era fruto de muito estudo, pois a harmonia era uma meta. A casa já ganhara ares de lar. As férias, providenciais para época de mudança, se findaram. Eu precisava voltar ao cotidiano exaustivo.

Saindo do trabalho, parei para fazer compras de supermercado, pois o abastecimento da casa estava bastante comprometido. No estacionamento, fui pegar ecobag no porta-malas quando dei de cara, novamente, com a sacola plástica, aquela das galochas. Passei-a para o banco do carona e fui às compras.

Descarregado o carro, desci minhas galochas, levando-as para meu quarto.

Ao recolher-me, pedindo uma boa noite de sono, de descanso, resolvi guardar as galochas, testemunhas de uma infância rica de afeto, de charme e de chuvas. Novamente embarquei na saudade de tempos idos. A bruma das lembranças – ou dos esquecimentos- me embriagava. A imagem daquela menina vestida na sua capa de chuva, de galochas e com a sombrinha me levou ao êxtase.

Bons tempos aqueles em que tínhamos tempo para nos produzirmos para sairmos na chuva. Eu e minha mãe prontas e meu pai com seu guarda-chuva preto de cabo encurvado. O que é a memória senão um passaporte para tempos passados e futuros, vividos ou sonhados? Assim, lembrei-me daquele guarda-chuva preto que não apenas pertencia a meu pai, mas que fez parte de sua imagem.

Mesmo que vivêssemos em uma cidade com uma bem definida estação chuvosa, aquele guarda-chuva para o que menos servia era para proteger da chuva. Na verdade, sua principal função era, certamente, de apoio. Protegia o meu pai não de um banho, mas de uma queda.

Por muito tempo o guarda-chuva preto e meu pai eram quase um. Todo dia (nublado ou ensolarado), lá se ia ele a caminho do trabalho, vestido em sua roupa social e de guarda-chuva, para cumprir a missão de mostrar, a quem tivesse sensibilidade, que tudo pode superar a função inicial para a qual foi inventado e, quiçá, ganhar um insuspeitado respeito. 

É assim que vejo, hoje, minhas galochas: uma passagem personalizada para o mundo das fantasiosas memórias ou das memoráveis fantasias.

– Dona Adélia, a senhora não vai trabalhar hoje?

Não era possível crer. O dia já havia nascido? Que tempos são esses, afinal? Não resta tempo nem para sonhar…

——————————————————

A autora:

Suzane Alaíde Lindoso da Silva

Nasceu no Recife (PE),  na década de 60, e reside em Piracicaba desde 1992. Estudou na Universidade Estadual do Ceará, onde cursou Letras. Desde que aportou por aqui, é professora de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental e Médio. Professora do Colégio Piracicabano, é apaixonada por textos, livros, palavras!  

(No Diário do Engenho – Suzane escreve sempre na segunda quarta-feira de cada mês)

15 thoughts on “Uma passagem personalizada – por Suzane Alaíde

  1. SUSSU, amei vc me possibilitar fazer uma “passagem personalizada para o mundo das fantasiosas memórias ou das memoráveis fantasias”, lendo o q vc escreveu… parabéns! 1 bjo meu.

  2. Querida mana, li sua cronica e amei. Pude acompanhar cada etapa mencionada com uma maestria propria de voce, heranca de nosso pai. Parabens! Continue escrevendo, sou sua fa.

  3. Suzane,
    Mais uma vez um presente! Uma jóia o seu texto. Ele mexe com a gente, faz-nos recordar…galochas…guarda-chuvas…sombrinhas, me lembro até da minha capa de chuva rosa choque!!!!!!! Parabéns! Continue.
    Bjs

  4. Eita coisa boa!
    E eu, ingênuo, nem sequer imaginava que a Suzane tinha tanta intimidade com as palavras, com as lembranças, com o dom de nos reportar a passados não conhecidos, embora igualmente saudosos.
    Mais uma vez parabéns por tão belo talento!

  5. Suzane,que delícia poder ler seus textos tão bem escritos.Quanto tempo não ouvia falar de galochas,viajei à minha infância, de verdade.Fico orgulhosa de ter amigas que escrevem tão bem,um conforto para minha alma leitora que adora crônicas e admira quem as escreve.Tb é uma forma de estar mais perto de vc.Obrigada amiga.

  6. Su,
    É impressionante como seus textos me emocionam! Este, especificamente, no começo causa uma expectativa incrivel…..,aí no decorrer da leitura experimenta-se uma sensação de calma, saudades e, por fim, tomamos um susto com a realidade.
    Parabéns,que vc continue nos proporcinando estas emoções…
    Bjs

  7. Nane,
    Nunca tive galochas (pelo menos não que me lembre), mas há pouco tempo atrás comprei um par de galochas da Hello Kity pra Isabella. Espero que ela tenha boas lembranças dos dias usando suas galochas e sua capa de chuva.
    Beijos

  8. Agradeço a todos as palavras tão carinhosas e encorajadoras. Estou mesmo tomando gosto pela coisa. Depois, não terão do que se queixar.
    Sintam-se abraçados por mim.

  9. Parabens amiga!Sempre eu a admirei muito.
    Voce escreve muito bem.Adorei sua crônica.
    Nao sabia que vc era pernambucana,terra de poetas e escritores nato
    Continue…voce promete!
    Beijos
    Cidinha

  10. Nane, Como painho diria, você sabe como dizer as coisas. Tô achando você um trem virado. (Esta é dele também). Ele adoraria ler este texto e se reconhecer na autora. Acho que estou fazendo isto por ele e também por mim. Amei tudo que você disse e me reportei para minhas próprias recordações, que se não incluem galochas, são plenas de matas, rios, córregos, currais, plantações, carinho, música, bonecas, fogão à lenha e muita imaginação. Tempos bons que voltam sempre a quaquer pretexto, como o seu texto, por exemplo. Obrigada por ele e por muito mais.

  11. É tão bom recordar coisas boas!!! Mas melhor ainda é saber partilhar com os outros estas memórias tão bem escritas por você tia Nane. Obrigado. Bjo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *