Recuperar a humanidade

Recuperar a humanidade

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Antes da vocação dos pais, a natureza chama-o para a vida humana. Viver é o ofício que lhe quero ensinar. Saindo de minhas mãos, ele não será, concordo, nem magistrado, nem soldado, nem padre; será primeiramente um homem.
– Jean-Jacques Rousseau, Emílio.

Os dramas que afligem nossa humanidade desfilam todos os dias no noticiário, a projetar uma espécie de documentário niilista, abordando múltiplas misérias, expressões de uma forma desencontrada, equivocada de se viver. Os temas da violência, da desigualdade social, da pobreza extrema, da ausência de perspectivas existenciais, do preconceito etc alcançam repercussão, audiência, em uma mídia sensacionalista. Com a consciência inquieta, visualizam-se cenas de uma crueldade, brutalidade sem limites, evidenciando os rastros, tropeços de um homem perdido, apartado, alienado de sua humanidade.

A banalização do mal alcança o seu nível mais nefasto, sua expressão mais perversa no mal radical, representado na violência que toma, define o próprio cotidiano, alcançando a todos, indiscriminadamente, ceifando vidas, existências singulares, sem piedade alguma. Mas é preciso atenção, pois a violência visível, midiaticamente repercutida, compõe-se apenas como uma das facetas de uma realidade bem mais perversa e injusta.

A perplexidade diante de tal realidade acaba por suscitar ideologias equivocadas, não menos perversas, fascistas, reacionárias. A sociedade, em seu desespero, passa a ser conduzida para alternativas simplistas, avançando na direção de culpabilizar tão somente o agressor, o ator da violência, concentrando todas às saídas na questão da idade penal e na implacabilidade da pena, sem discutir, debater as causas primeiras da violência banalizada.

O mal radical, que marcha pesadamente sobre os indivíduos, devastando o tecido social, deve ser considerado desde suas raízes mais profundas. É preciso antes mergulhar fundo no problema, buscar as causas da violência brutal, a compor um quadro caótico de desintegração social, e não apenas se restringir à ação sobre seus terríveis efeitos e consequências.

Há muitos outros culpados, que escondidos na omissão, na indiferença, na hipocrisia, na desfaçatez da incompetência se apresentam como inocentes, quando na verdade são os mais terríveis criminosos. Antes de culpar o agressor, especialmente o jovem violento, é preciso indagar sobre as chances, as oportunidades que lhe foram dadas para que se humanizasse. Situações de extrema miséria, de total ausência de perspectivas, sem as mínimas condições básicas para o afloramento das potencialidades humanas compõem-se como eficazes celeiros a cultivarem e perpetuarem a barbárie.

A propagação de um estilo de vida vazio, estéril, pautado no consumo, no sucesso, no poder, na concorrência e competição, no individualismo exacerbado, na indiferença e insensibilidade, no status, deve ser urgentemente repensada. É fundamental que se resgate outras perspectivas de existência, mais condizentes com os apelos, possibilidades de nossa humanidade. Torna-se cada vez mais evidente que o abandono de princípios fundamentais, basilares, a ressaltarem as dimensões do amor e do serviço ao próximo, do perdão e da misericórdia, da justiça e da ética, tem conduzido a vida humana e a convivência social para uma situação trágica, insuportável.

Alguém, eventualmente, sempre poderá objetar que todos têm escolhas e que cada um é responsável, em última instância, por seus atos. Mas toda escolha pressupõe antes liberdade, alternativas, possibilidades. Sem as condições fundamentais, que são de ordem tanto material quanto espiritual, a existência humana não tem como alcançar sua plenitude. O desenvolvimento humano, a vida em abundância, compõe-se como um processo complexo, a exigir determinadas estruturas de proteção e cuidado imprescindíveis. A existência humana precisa de uma rede de proteção, consubstanciada no núcleo familiar, no vínculo com a comunidade, na ação do Estado. O descuido para com um único jovem, indivíduo, cidadão representa o fracasso de todo o sistema.

O fato é que o contemporâneo se depara com a falência da política, a direcionar, definir as bases do construto social. Sofre-se hoje com a lacuna, total ausência de projetos societários. A política – desde os seus fundadores gregos, passando também pelos pensadores iluministas – consiste na arte de se organizar a sociedade visando o bem coletivo. Por meio da ciência política, estrutura-se a sociedade para que todos os indivíduos, revestidos da dimensão da cidadania, desfrutem dos bens sociais, alcançando, na vida coletiva, a realização humana, a própria felicidade.

A DaliA concepção de uma política que seja capaz de compor uma nova ordem social, a suplantar os dramas de uma humanidade cindida, passa pelo enfrentamento e articulação de todos os temas, a envolverem o tecido social. As dimensões da segurança pública, da educação, da moradia, da democratização dos espaços de cultura e arte, da mobilidade urbana, dos direitos sociais etc são aspectos de uma única e mesma realidade complexa. É preciso que a atuação política contemple, abarque todas as dimensões da vida em sociedade, promovendo processos de equidade social e protegendo, principalmente, os mais fragilizados socialmente.

A política desvela-se como a via para a construção do bem comum, de uma sociedade que possibilite o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. É preciso, então, o delineamento de um novo contrato social, capaz de promover a democratização, a partilha dos bens materiais e espirituais, incluindo todos os indivíduos em um vasto movimento de reconstrução, redescoberta da própria identidade humana.

A sociedade, o Estado, as igrejas, as famílias devem garantir a todos os indivíduos, cidadãos, sobretudo para aos jovens mais fragilizados, a realização de um projeto primeiro: ser homem, viver a essencialidade do humano. Promovendo-se um único sujeito, lapidando-se sua formação, protege-se a todos, ninguém será a vítima: esta é a grande questão e o ganho de uma sociedade a zelar, sabiamente, pelos seus.

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Adelino Francisco de Oliveira é doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Braga-Portugal.

 

 

23 thoughts on “Recuperar a humanidade

  1. Professor Adelino,
    Paz e Bem!
    Que nosso Deus Providente conceda-lhe sempre muita luz na caminhada, para continuar nos ajudando com suas reflexões pertinentes. Gostei muito desse artigo; acredito também que em primeiro lugar necessitamos ser pessoas de bem com a vida. Assim poderemos compartilhar com nossos irmãos e irmãs os dons, independentes da vocação (eleição) recebida.

    Anésia
    “Não perca de vista seu ponto de partida”.
    Santa Clara de Assis

  2. Estimada Ir. Anésia,

    Agradeço pela interlocução qualificada. É bom sabê-la circulando por este espaço. Assim a reflexão vai ecoando, tornando a palavra esperança e proposta de um novo tempo.

    Esteja bem!

  3. Professor Adelino,

    Compartilho de suas reflexões e seu artigo me tocou profundamente. Acredito que o outro só consegue compartilhar daquilo que tem dentro de si. Como poderia devolver paz, respeito e justiça ao meu próximo, se nunca as recebi…
    Um grande abraço.

    Profª. Gabriela

    1. Prezada Profa. Gabriela,

      É mesmo fundamental que se desenvolva a dimensão da interioridade, da espiritualidade. Precisamos educar as crianças, jovens nesta perspectiva.

      Esteja bem!

  4. Querido Professor, Adelino!
    Não me canso de ouvi-lo e lê-lo também (risos)

    Primeiro, gostaria de dar uma sugestão para o “Diário de Engenho”. Está faltando a opção “curtir e compartilhar” nesse site referente a essa coluna que dispõe. É um absurdo eu ler tão brilhantes palavras e não poder compartilhar e curtir mil vezes em minha rede social. (risos de novo)

    Belíssimo texto, como sempre. Existem tantos meios para se recuperar a humanidade e a partilha de ideias é uma delas, acredito eu… Se bem consegui entender as explicações do senhor nas aulas de Filosofia da Educação, depois de sermos educado de maneira correta pela natureza, seremos levado a viver em sociedade, para receber dela o que lhe faltar e para agir no sentido de restaurá-la.

    Parabéns, professor!
    Amo as tuas aulas. 😀
    Fabiana Oliveira – 1º Ano de Pedagogia
    Fraterno abraço!

    1. Olá, Fabiana!

      Agradecemos pela visita e pela sugestão. Vamos verificar a possibilidade de inserir no sistema do site essa ferramenta. Por hora, convidamos você a curtir nossa fanpage intitulada Piracicaba.

      Mais que atenciosamente,

      Alê Bragion
      editor.

  5. Querida Fabiana,

    Agradeço pela leitura atenta e interessada do texto. A perspectiva de Rousseau é mesmo muito sugestiva. Temos muito ainda o que avançar em nossa humanidade.

    Esteja bem!

  6. Querido professor Adelino!

    Parabéns pelo texto. Realmente tem se tornado “insuportável” essa situação. Estamos com urgência de humanidade nos homens. Gosto de um texto do Eugênio de Andrade que diz assim:

    Urgentemente

    É urgente o amor.
    É urgente um barco no mar.
    é urgente destruir certas palavras.
    ódio, solidão e crueldade,
    alguns lamentos
    muitas espadas.

    É urgente inventar alegria,
    multiplicar os beijos, as searas,
    é urgente descobrir rosas e rios
    e manhãs claras

    Cai o silêncio nos ombros e a luz
    impura, até doer.
    É urgente o amor, é urgente
    permanecer.

    Abraços,

  7. Estimada Lucila,

    É mesmo muito bom vê-la por este espaço. Que poema maravilhoso. De fato, é urgente retomarmos o caminho de nossa humanidade.

    Esteja bem!

  8. Parabéns, Professor Adelino.
    Como sempre em seus textos, reflexão profunda, abrangente e competente sobre nossa atual situação social e sobre a condição humana.
    Admiro muito suas posições.
    Continue nos ensinando e nos provocando.
    Abraço.

  9. Estimada Zilma Bandel,

    Agradeço novamente por suas considerações. O tema é, de fato, bem delicado e urgente. Talvez o esforço de reflexão seja um caminho para superarmos a perplexidade.

    Esteja bem!

  10. Os seus textos sempre com toda ousadia, nos faz estar em busca constante de meios que desperte o prazer de aprender e aprimorar os nossos conhecimentos…..
    “somos seres de enraizamento e de abertura. A raiz que nos limita é nossa dimensão de imanência. A abertura que nos faz romper barreiras e ultrapassar todos os limites, em busca permanente por novos mundos….” Leonardo Boff

  11. Achei muito interessante o como você traz a banalidade do mal para o atual contexto da sociedade pós-industrial no Brasil, no qual as famílias se desintegram e laços se rompem em função do ganho material e do status quo. Esse crescente avanço do capitalismo selvagem é diretamente responsável pela extrema miséria da população e também causa primária da perda de jovens para o mundo do crime, sendo esse mais um ponto muito bem abordado pelo seu texto. Rousseau dizia que o homem nasce livre e a sociedade o corrompe, puramente verdade, tendo em vista que em meios onde o poder do Estado é eclipsado pela imagem de traficantes e bandidos poderosos que possuem o poder efetivo dentro de determinadas comunidades faz com que as crianças tornem-se mais propensas ao crime.
    A questão da liberdade de escolha também é algo imprescindível, e concordo plenamente quando você escreve que para haver liberdade de escolha, antes deve haver liberdade de ação, porém, como o Estado tem se mostrado incapaz de administrar seu próprio sistema educacional, impedindo jovens de alcançarem um potencial intelectual, em favor a uma massa manipulável por não possuir educação, o que também faz com que o custo da mão-de-obra diminua e, consequentemente atraia mais lucros para os grandes empresários em detrimento da qualidade de vida da população.
    Uma boa solução seria o uso das escolas de maneira efetiva, com ensino qualitativo e não quantitativo, como tem sido feito para garantir o acesso do ensino somente aqueles que podem pagar por ele. O próprio governo mantém a riquíssima estrutura educacional particular, sucateando a própria para que apenas aqueles que tiveram condições estejam aptos a receber conhecimento, pois desde pequenos já estão com isso acostumados.

    1. Olá, caro Giovanny,

      Vejo que a veia crítica ainda persiste em seu ser. Muito bem! O importante é prosseguirmos debatendo, discutindo, escrevendo e atuando para a transformação de uma realidade que não serve a todos.

      Esteja bem!

  12. obrigada professor por essa sábias palavras,
    que nos impulsiona a pensar de maneira diferente
    já que estamos tão acostumados a ouvir, ver
    e ler “coisa” que não nos acrescenta nada.
    um abraço.

  13. sem entrar nos pormenores, pois o texto esta muito bem consistente, 99% de concordância, vou colocar o ponto que discordo: aos 14 anos, 1,83, 68k fui pedir uma garota em namoro, para isso fui falar com seu avô que a criava, Seu José de 65 anos ou mais, não me lembro ao certo, fui acreditando no não como garantido, mas como bom teimoso nada tinha a perder, e para meu espanto Seu José permitiu, me deu alguns conselhos e regras a seguir. Espantado com o resultado da conversa, não resisti e perguntei a ele porque estava dando a permissão, e ele me respondeu que se lembrava claramente de seus valores e conceitos que tinha aos 14 anos e que aquela altura da vida percebia que não eram muito diferentes, que havia agregado muito conhecimento mas sua essência era a mesma, hoje aos 47 compartilho da mesma opinião e acreditar que alguém com 14 anos é uma criança inocente não me parece refletir a minha realidade, talvez a realidade de alguns garotos confinados em apartamentos ou outros confinamentos, mas na maioria dos casos de infratores posso afirmar que nunca vi inocentes e nem indefesos, A FASE DE SE TRABALHAR O CARÁTER É MUITO ANTES DISTO, depois disso é cadeia! o grande problema é não haverem culpados, me lembro que quando criança, pobre era somente pobre, hoje é vitima e tem direito a matar, roubar e ser chamado de DIMENOR.

  14. Prezado Idinaldo,

    Agradeço pelo comentário. A formação do caráter certamente tem início na infância e se prolonga pela juventude. As experiências juvenis são mesmo fundamentais. Os valores da maturidade trazem, carregam tudo que se construiu ao longo das experiências próprias da infância e juventude. Particularmente tenho muita esperança no ser humano, compartilho da convicção de que ninguém é um caso perdido. Sempre é possível se recomeçar. Tal compreensão é que me lança na tarefa de ser educador.

    Esteja bem!

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