Não é a Filosofia ou a Sociologia que estão sob ataque: é a educação pública de qualidade (pela qual ainda lutamos)

Não é a Filosofia ou a Sociologia que estão sob ataque: é a educação pública de qualidade (pela qual ainda lutamos)

Não é a Filosofia ou a Sociologia que estão sob ataque: é a educação pública de qualidade (pela qual ainda lutamos)

por Francine Ribeiro

O pronunciamento do presidente da república acerca das supostas intenções do MEC de reduzir investimento em Cursos de Humanas, nominalmente Filosofia e Sociologia, é só mais um parágrafo – capítulo exigiria mais do que os caracteres permitidos pelo Twitter e que parecem ser também o limite do presidente – da narrativa anti-intelectualista adotada pelo governo e seus apoiadores.

No entanto, atacar a Filosofia não é bem uma inovação desse governo. A Filosofia, desde suas origens, muitas vezes foi apontada como inimiga pública de governos e governantes – quanto mais autoritários, maior a fúria com que se atiram contra ela. Mesmo em tempos de maior estabilidade e normalidade democrática, uma parcela considerável da sociedade manteve-se sempre desconfiada da Filosofia. Essa desconfiança ora se traduz em certo desdém – a Filosofia é a ciência com a qual ou sem a qual o mundo continua tal e qual -, ora num reconhecimento desmedido – Filosofia é coisa de gente muito inteligente – mas que, no fim das contas, tem o mesmo resultado prático: contribui para afastar a maioria das pessoas da Filosofia.

Seja porque é inútil ou porque é algo muito difícil, a verdade é que muitos filósofos também contribuíram com essa fama da Filosofia de senhora estranha ao grande público. Por motivos históricos, a Filosofia também tem sido uma área de grande concentração de homens ricos ou bem-nascidos, tendo sido, ao longo de sua história, pouco receptiva às mulheres ou àqueles que vinham de classes mais baixas. Afinal, ter tempo livre para pensar sobre as grandes questões da vida sempre foi privilégio de uns poucos. A maioria das pessoas esteve sempre preocupada em sobreviver, em ganhar o pão de cada dia, e quando começou sobrar tempo, queria descansar e se divertir.

Mas se a Filosofia nasce encastelada, sendo privilégio de uns poucos, hoje ela vive um momento diferente. Os ambientes universitários, embora não sem resistência, têm cada vez mais percebido a importância de se abrirem às mulheres e aos diferentes grupos da sociedade que antes estiveram apartados da Filosofia. A própria existência de cursos de Filosofia em Universidades Públicas permitiu essa aproximação. Filhos e filhas de trabalhadores que tiveram pouco acesso à Escola – como eu – podem hoje cursar Filosofia. Ainda há muitas barreiras a serem rompidas e muitos espaços a serem conquistados. E na contramão dos esforços de democratização da Filosofia, e dos espaços universitários como um todo, a fala do presidente e as intenções do ministro da educação repisam velhos preconceitos e lugares comum. A declaração do ministro durante a live com o presidente: “Pode estudar Filosofia? Pode. Com dinheiro próprio.”, retoma o elitismo da Filosofia e mais uma vez a joga para longe da maioria das pessoas. Ou pior: ao falar em pagar para estudar filosofia, o ministro pode estar pensando no curso online do guru desse governo, astrólogo de profissão e autoproclamado filósofo que, ao que tudo indica, doutrinou bem o ministro. Mas, no limite, o que interessa é que quem não tiver dinheiro próprio para poder se dar ao luxo de estudar Filosofia, vai ter que estudar o que o ministro e o presidente decidirem que é adequado.

Segundo o presidente, “a função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”. Num primeiro momento pode parecer que não há nada de errado com a fala do presidente. Afinal, quem discorda que devemos ensinar leitura e escrita aos nossos jovens? Ou que os jovens precisam aprender matemática? Quem discorda que a educação deve melhorar a sociedade a nossa volta? No entanto, na cabeça do presidente – pelo menos é o que seu Twitter nos permite saber – basta ensinar leitura e escrita e um pouco de matemática. E depois, o essencial é ensinar um ofício, de modo a garantir renda para a pessoa e sua família. A maldade desse pensamento está em limitar os sonhos e potenciais de milhares de jovens. Que para um jovem que nasceu em família pobre e sempre passou necessidades conseguir um emprego é algo maravilhoso, não tenho dúvidas. Sei bem o que é isso. Comecei trabalhar muito cedo, não por necessidade extrema, mas a condição financeira dos meus pais era bastante complicada. Fazer um cursinho, prestar vestibular, entre outras coisas, só foram possíveis porque eu trabalhava desde os 14 anos. E quando eu larguei um emprego de carteira assinada para embarcar para outra cidade, para fazer Filosofia, muitos acharam que eu era louca. Meus pais, sem entenderem bem o que era essa tal filosofia, se orgulhavam da filha que seria professora, mas também sofreram bastante, temendo que eu passasse fome, pois não tinham como me sustentar numa cidade grande como Campinas. Com 19 anos, eu saí otimista de casa, sabendo da existência da Assistência Estudantil, da Moradia e outras bolsas que tornariam meu sonho possível. Mas tudo ao meu redor conspirava para que eu ficasse na minha cidade pequena, na garantia do meu trabalho, com carteira assinada. Pessoas como Bolsonaro e o atual ministro da educação, não veem chances melhores para pessoas que nasceram numa família pobre como eu. Aprender a ler e escrever, um pouco de matemática e ter um ofício que garantisse renda seria o máximo que eu poderia sonhar.

Mas eu queria mais e tenho certeza de que muitos outros jovens, como eu, sonham com mais. Hoje o ministro e o presidente atacam Filosofia e Sociologia, mas amanhã poderão usar o mesmo argumento para atacar Engenharia, Medicina, Veterinária. Durante a campanha eleitoral, o presidente disse que o jovem hoje tem tara por diploma de ensino superior (aqui), e que deveríamos priorizar a formação técnica no ensino médio. Mais uma vez, nenhum problema com o ensino técnico, trabalho hoje no IFSP e sou defensora de um ensino técnico integral e integrado, de qualidade, que forme jovens críticos e atuantes, cidadãos para o mundo e para o mundo do trabalho. O problema é não dar oportunidades para que os jovens possam escolher que caminhos querem seguir. O problema é o governo decidir que jovens pobres, que frequentam a escola pública, têm que ter formação técnica e ponto. Vejam, a fala do presidente é muito mais do que um ataque a essa ou àquela área do conhecimento, a esse ou àquele curso. A fala do presidente nos dá pistas de qual é sua visão da escola pública. O discurso é mais complexo – ou seria falacioso? -, pois defende que se retire recursos e investimentos das Universidades Públicas em favor do ensino básico. De novo, ninguém discorda que o ensino básico precisa de mais investimentos. Mas será que a única opção é retirar dinheiro do ensino superior? Ao falar em investir na educação básica, parece que o presidente está preocupado e comprometido com os mais pobres, afinal são eles que frequentam a escola pública. Mas não é bem assim. O raciocínio do presidente vai no sentido de limitar as possibilidades daqueles que nasceram pobres, condenando-os a serem mãos de obra barata com alguma qualificação técnica (não temos motivos para alimentar ilusões de que irão investir e/ou ampliar um projeto como o dos IFs, estruturado no tripé ensino-pesquisa-extensão, muito pelo contrário.). Se meu pai não pode estudar e eu tenho um curso técnico, parece que aquela responsabilidade do Estado de oferecer um ofício que garanta renda e melhores condições à família foi plenamente cumprida.

Embora formada em Filosofia por uma Universidade Pública, a fala do presidente não me incomoda por atacar a Filosofia. Ela me incomoda porque é parte de um todo muito mais perverso. Ela me incomoda porque não é a Filosofia ou a Sociologia que está sob ameaça nesse (des)governo, é a educação pública de qualidade, em todas as suas etapas, que está correndo riscos. Enquanto professores e parte da sociedade civil têm lutado para garantir educação pública de qualidade para todos, temos um governo cujo principal objetivo é destruí-la. E que não se enganem: a declaração de intenções de corte para a área de Humanas é só o começo. Se conseguirem seguir nessa toada, os cortes não serão seletivos. O caminho é destruir as Universidades Públicas e oferecer educação básica profissionalizante aos moldes dos anos da ditadura: tecnicista, que privilegiava disciplinas técnicas, retirava ou reduzia aulas de História, Geografia e afins. A Reforma do Ensino Médio já adiantou parte do serviço. Resta saber qual será a velocidade da destruição. Vamos pagar pra ver?

 

 

Francine Ribeiro é mestre em Filosofia pela Unicamp

 

Imagem: Allegorie der Philosophie oder Kontemplation (1759), de Gottlieb Heymüller (1715-1763)

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