Machado de Assis e O Eterno Brasil dos Agregados

Machado de Assis e O Eterno Brasil dos Agregados

José Dias amava os superlativos.

Era um modo de dar feição monumental às ideias;

 não as havendo, servia a prolongar as frases.

 Machado de Assis.

 

Um dos traços mais finos da famosa ironia machadiana delineia, sem sombra de dúvidas, a figura boçal do agregado. Elemento social peçonhento, o agregado pertencia à classe dos remediados acolhidos por lares burgueses que aparentemente lhe permitiam o trânsito “livre” e sua participação junto à família burguesa, enquanto esta lhe impunha “familiarmente” uma fidelidade canina e exigia dele a prestação zelosa dos mais variados “favores” – ao mesmo tempo em que lhe amputava implicitamente qualquer condição de enriquecimento real ou ascensão social verdadeira.

Meio termo, mediano, medíocre, médio, o agregado – em especial o machadiano – era assim um ser de identidade social duvidosa, pois não era pobre como os pobres nem rico como os ricos. Da mesma forma, não era patrão (nem senhor) como patrões (ou como os senhores) nem explicitamente um empregado (muito menos um escravo) como os demais serviçais (e escravos) da casa. Como nos ensina o crítico e teórico Roberto Schwarz, em seu livro Ao Vencedor as Batatas, os agregados não se configuram “nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande” (SCHWARZ, 2012, p.16).

Assim é que José Dias – do clássico romance Dom Casmurro, de Machado – talvez seja, no cânone da literatura brasileira, quem melhor ilustra a figura decrépita e lastimável do agregado brasileiro. A saber, na trama do romance em questão é José Dias quem acaba alimentando os desencontros e desarranjos que vão desestabilizar a vida das protagonistas Bentinho e Capitu. Invejoso, rancoroso, maldoso e incomodado com sua condição de agregado (ou seria melhor dizer: preocupado demais com o destino que sua condição lhe oferecia), é José Dias quem – pensando sempre em tirar proveito de tudo em benefício próprio – trama e articula para que Bentinho e Capitu tenham seus caminhos separados e mergulhem, ambos, em imensas, profundas e tristes crises.

Adulador, verborrágico, calculista, traiçoeiro, perigoso, falso e pomposo, o agregado José Dias humilhava os que lhe pareciam menores – e, ao humilhá-los, sentia-se ilusoriamente poderoso como os que lhe pareciam grandes. Todavia, vivia ele também seu próprio tormento: o eterno medo de perder até mesmo sua lastimosa condição de agregado. De certa forma, e também por isso, talvez possamos dizer ainda que a infelicidade final que acomete às personagens do referido romance de Machado tem suas raízes fincadas no fel abundante e nas artimanhas doentias da complexa e vergonhosa figura do agregado José Dias.

Ora. Do século XIX de Machado para cá, fato é que – vendo a vida imitar a arte – nosso país vem sendo tomado por milhares e milhares de José Dias para cada um ou outro Bentinho ou Capitu que se vê por aí – e não há aqui qualquer ineditismo sociológico-literário nessa afirmação (já clássica, inclusive). Os agregados, a bem dizer, são a base – hoje – de uma classe larga e robusta que engrossa as fileiras do país. Conservadores, cerimoniosos, nem pobres ou verdadeiramente ricos, temem ainda seu despejo imediato das hordas burguesas que lhes garantem as migalhas diárias que os fazem sentirem-se ilusoriamente abastados e poderosos.

José Dias do século XXI, os medíocres agregados pós-modernos brasileiros já não habitam mais as casas de seus “padrinhos”, uma vez que muitos já possuem seus próprios palacetes (ou sua casinha própria). Porém, ainda atacam aos mais pobres e àqueles que se opõem em defesa dos menos favorecidos. Classe social remediada e que quer dar pinta de endinheirada, a classe dos agregados de agora ainda tem ojeriza ao povo e continua a criminalizar a miséria – reputando-a como condição escolhida por quem (diferentemente do que os agregados pensam de si mesmos) são tachados de “vagabundos”, “bandidos”, “malandros”, “escória”.

Continuando a desconhecer o poder de transformação que têm em mãos, os agregados do novo milênio seguem a tradição da adulação dos poderosos, a quem dedicam árduos favores e fidelidade absoluta. Mais do que isso, continuam a construir um Brasil que parece querer tornar-se eternamente desigual, injusto e dependente “dos grandes” detentores do capital e do poder econômico – desde que, à mercê desse favor aos poderosos, continuem os agregados donos de suas casinhas, de suas lojinhas, de seus escritorinhos, de suas empresinhas (as quais os agregados mais abastados acreditam ilusoriamente ser, na verdade, imensos conglomerados capitalistas).

Curiosamente, os agregados de hoje e seus filhos – herdeiros diletos de sua mediocridade política e social – diferentemente do agregado machadiano, possuem uma rotina própria (e ilusoriamente livre). Vão à escola que lhes é preparada e dedicada especialmente (pobre não precisa ir à escola, certo?) – onde, aliás, muitas vezes são obrigados a ler Machado de Assis sem, no entanto, conseguirem compreender a ironia que tão bem lhes descreve nos romances do Bruxo de Cosme Velho. Vão também a igrejas das mais deferentes denominações (que igualmente os acolhem de braços apertos), demonstrando posteriormente terem um comportamento social exemplar e, acima de tudo, cristão. Todavia, ao menor sinal de perturbação de sua condição social ou de ataque ao desmonte das regras do jogo da elite à qual julgam pertencer, os agregados século XX-XXI juntam-se em coros, em imensos grupos, e formam verdadeiros exércitos capazes de contrariar sem remorsos a educação escolar que receberam e os preceitos religiosos cristãos que dizem cultivar e respeitar.

Nessa missão que encarnam, quase sempre se tornam raivosos. Em semelhante toada, seguem desprezando aos Direitos Humanos, refutam discutir questões raciais, de gênero e, mesmo, político-ideológicas. Atuando pelos senhores do dinheiro, encarregam-se do serviço sujo de limpar as ruas do país daqueles que – aos olhos deles – são “populistas” tentando promover baderna e que atentam contra a ordem, a moral e às “pessoas de bem.” Irados, os agregados lançam-se então contra as minorias e seus defensores – ridicularizando-lhes o discurso, negando-lhes condições e possibilidades, instaurando um terror discriminatório e altamente contagioso.

Como em Dom Casmurro, podemos prever que o desfecho de um enredo que conta com a maciça presença e atuação dos agregados brasileiros encontrará, de maneira quase certa, uma tragédia absoluta ao seu final. Assim é que, retomando Machado, lembremos que José Dias morre sem atingir seus sonhos mais íntimos. Sua morte – cuja tristeza e dor é pouca e falsamente sentida pelos poderosos aos quais ele dedicava a vida – não põem fim, contudo, à sua trajetória e ao legado de sua classe social. Pelo contrário, espelhando as disparidades e atrocidades sociais do universo ao qual pertence, José Dias deixa atrás de si um rastro de humilhação, negatividades, desigualdade e assujeitamentos capazes de darem continuidade à tragédia humana que segue afetando àqueles que o circundavam.

Por isso, na via não ficcional do Brasil de hoje, tal como no enredo de Machado, cumpre reconhecer que os “donos do país” – cada vez mais fortalecidos e poderosos – por suas vezes seguem também sempre adiante, buscando sempre novos agregados que lhes sirvam de capachos e puxa-sacos ad eternum. Do mesmo modo, pouco ou nada se importam esses senhores com o fim terrível ou a morte prematura que a classe subserviente de seus agregados (e de outras centenas de milhares e milhares e milhares de explorados de classes ainda mais economicamente inferiores) possam vir a sofrer.

Também tal com no romance, podemos ainda prever que, na trajetória desse enredo nacional, muito dificilmente alguém consiga ser plenamente feliz ao final da história – nem os pobres, nem os remediados, nem os agregados e talvez nem mesmo os senhores dos castelos e dos impérios. O olhar realista de Machado nos ensina assim, finalmente, que, num país cuja massa de agregados segue dominada por uma servidão voluntária e fervorosa a seus senhores, nenhuma esperança vã é capaz de modificar o desfecho terrível da tétrica trama que nos envolve e nos pré-destina.

Casmurros de si mesmos – e se nada no front nos sinalizar em breve uma mudança radical de posição política e social que ressitue e ressignifique o pensamento da imensa classe de agregados do país –, sentiremos em breve (como na verdade já estamos sentindo), todos, a força do elemento trágico (que objetiva apenas o lucro e a mais-valia) a nos antecipar ainda mais o peso de um final tenebroso, escrito com superlativos e mesóclises, mas tingido pela cor escarlate do sangue de nossa gente mais simples e mais honesta.

 


 

Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

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