Ifigênia: a vida sob o signo da tragédia e do destino.

Ifigênia: a vida sob o signo da tragédia e do destino.

Ifigenia 1 teatro Trilha

Vocês conhecem o irascível Agamêmnon, com suas ambições desmedidas, seus propósitos questionáveis? Já entendeu Ifigênia, princesa, abnegada, lançada ao doloroso martírio?  Já leu sobre a mãe condoída, mulher vingativa, redentora de todos os males do esposo infiel? Pois bem, nas duas primeiras semanas deste mês de outubro, o épico e a tragédia estiveram presentes na arena de Piracicaba, comovendo o público, arrancando júbilo, pranto e alegria. Raul Rozados, Carla Sapuppo e Vitória D’Abronzo – sob a direção de Fátima Monis – encenaram o espetáculo Ifigênia, protagonizado no Espaço Teatral Garapa.

Assistir à encenação remete-nos, deliciosamente, às experiências genuínas do mundo grego. O universo mitológico descortina-se como o espaço das extremas vivências do homem, cujas sensações ampliam-se, revelam-se por conta dos desejos e caprichos dos deuses.  O espetáculo reconta a condição de Ifigênia, jovem donzela, filha do rei Agamêmnon, comandante, guerreiro, protagonista da conhecida Guerra de Tróia, conduzindo o espectador à perspectiva do destino, inexorável, avassalador. Agamêmnon, cujo intuito levava, de forma contundente, todas as ações, todas as estratégias para vencer a batalha, entregara a jovem filha ao sacrifício, espécie de oferenda aos deuses, em troca da vitória, de bem aventurança. Ifigênia, sofrida, corajosa e destemida, acata a lei maior do pai Agamêmnon, rendendo-se à morte, à sua essencial condição de mulher predestinada. Muito embora a filha – quase estoica – tenha aceitado e trilhado o caminho que lhe foi, duramente, imposto, a mãe, inconformada e aturdida, por dez longos anos, prepara sua vingança, a revanche que implica o assassinato do esposo, responsável – conforme o desígnio oracular da deusa Ártemis – pelo duro fim de sua primogênita.

Ifigenia 3 teatro TrilhaSabe-se que a Guerra de Tróia é narrada por Homero no livro Ilíada. Todo o comportamento dos espartanos e dos micenos justifica-se pelo incidente no qual o encantador Paris, príncipe troiano, toma o coração da bela Helena, esposa de Menelau, irmão de Agamêmnon, engendrando-se a guerra que perdura e perfaz atos heroicos por dez extenuantes anos. O espetáculo, alimentado pela dicção impecável de Raul Rozados, sua energia cênica, e pela vibrante e efusiva capacidade de Carla Sappupo em encarnar a personagem de Clitemnestra, conformando a mãe condoída, ressentida, cujo pranto implacável não concede qualquer remissão aos propósitos do marido, abre novos territórios para que o espectador sinta, sutilmente, o coração trágico do homem grego.

Adentrar o campo da tragédia é soltar a alma e a consciência para o mundo das forças plásticas e do conhecimento, do caos e da bonança, do medo e da valentia. Trata-se de antever as dores e as alegrias, aceitando que o destino pode ser imprevisível e pouco cognoscível. O homem trágico ensina-nos a viver: transmuta todos os queixumes numa força vital, numa postura verdadeira para acatar o que, tristemente, nos cabe enquanto qualquer sopro de vida pretenda persistir. O clamor grego atravessa as vísceras, desafia o espírito e envida todos os esforços para tratar o mundo como obra de arte, o protótipo de uma encantadora poesia, aforismo, arena da loucura, embarcação dos desesperados. Acompanhar a encenação proposta pelo Grupo Teatral Trilha liberta-nos de algumas amarras, certezas inapropriadas, seguranças esperadas: estamos soltos, amedrontados diante do que habita nosso interior – sentimentos contraditórios, amor, ódio, temperança, insanidade perpétua.

Ifigenia 2 teatro TrilhaA grande Ifigênia, seu pai guerreiro, a mãe amargurada e rancorosa personificam o que estamos predestinados a ser, o que o homem encontra de glorioso e também vil em toda sua humanidade. Quanto mais cedo aceitarmos que estamos expostos, sujeitos às amarrações do porvir, um irresistível apelo para experimentar o que tende a ser mais duro, conflitante, dialético e temerário, a vida tornar-se-á aventura, uma clara epopeia. Quando do espetáculo, elevado pelas cordas do violão, sussurrando as melodias – quase todas de autoria de Raul Rozados –, libera-se a silenciosa canção, uma espécie de voz, um clamor, um chamado para que todos nós ousemos embarcar na grande nau dos afetos, tal qual fizeram micenos e espartanos. E o que esperar do homem moderno, como discerni-lo, compreendê-lo, senão comparando suas práticas às façanhas dos trágicos: guerras violentas, a persistência de um jeito belicoso, várias artimanhas, deuses obrando por seus filhos, pelo louco e por seus desatinos, e uma grande inspiração para o sofrimento irreversível, para o destino, para as paixões escancaradas?

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GTS (225)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria Teresa Silva Martins de Carvalho é assistente social e autora do livro “Paixão de Cristo: paixão de Piracicaba”. 

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