Dimensões Filosóficas a partir da África.

Dimensões Filosóficas a partir da África.

Africa Negra

O vasto continente africano, com seus múltiplos povos e complexas culturas, é sem dúvida detentor de uma sabedoria que também deve ser considerada como perene. A África é fonte de intensa espiritualidade, com uma riqueza e singularidade de rituais e crenças, a ressaltarem, a partir de uma viva memória e culto à ancestralidade, a relação e equilíbrio entre a vida e a morte. As percepções sobre o lugar da materialidade e a concepção de existência consubstanciam-se em uma profunda compreensão de humanidade.

Os povos africanos e suas culturas têm muito a oferecer à humanidade, particularmente em um contexto de encruzilhada civilizacional. É evidente que o Ocidente passa por um agudo processo de esgotamento, mergulhado em seu niilismo e materialismo, que tem se revelado cada vez mais estéril. Talvez as experiências humanas oriundas de mãe África apontem caminhos de esperança.

Sem desconsiderar os violentos processos históricos impingidos ao continente africano, talvez sintetizados na terrível ignomínia da escravidão negra – mal incomensurável produzido pelo Ocidente –, é preciso vislumbrar a África para além da noção de uma terra sonâmbula, perdida em si mesma. As múltiplas experiências históricas de dor e opressão não foram capazes de anular a elevada compreensão sobre o sentido da existência construída em solo africano. Há muito o que se apreender com mãe África.

Dentre tantos aspectos singulares, a fundamentarem visões filosóficas e existenciais africanas, talvez a expressão ubuntu seja a que tenha mais força e incidência para se repensar o modo de vida nas sociedades ocidentalizadas. Contrapondo-se a uma racionalidade fechada, que afirma o ser a partir da negação e aniquilação do outro, ubuntu designa uma profunda concepção ontológica, ao compreender que o ser se constitui com e a partir do outro.

Ubuntu significa reconhecer que não há possibilidade de existência feliz sem a intensa relação com o outro. Neste ponto o termo ubuntu remete a uma compreensão ontológica que implica, necessariamente, a felicidade individual com as dimensões da ética e da política – a estruturarem a própria economia da sociedade. A realização do indivíduo e as perspectivas de felicidade somente se tornam plausíveis quando incluem o outro, o próximo, a coletividade.

Outra perspectiva interessante que se desdobra do pensamento africano é a concepção filosófica de libertação. Há aqui uma profunda confluência com o pensamento forjado no contexto Latino-americano. A filosofia da libertação, gestada nas experiências de dominação e opressão impostas à América Latina, encontra ecos na história africana. A mãe África convida o mundo, particularmente a América Latina, a recompor os horizontes e anseios de libertação.

Uma libertação que passa pela afirmação ética da dignidade de todos os sujeitos. O reconhecimento de que todo ser é portador de uma dignidade inerente, indelével a sua condição humana. Uma libertação no campo da espiritualidade, enfatizando a beleza e legitimidade das mais diversas expressões religiosas e culturais. Uma libertação no campo social, a reconstruir as sociedades a partir de experiências centradas no comunitarismo. Uma libertação político-econômica, ressaltando o poder como serviço e a economia fundada na distribuição equânime e justa dos bens produzidos. Uma libertação no campo jurídico, tendo como princípio basilar uma justiça restaurativa. Uma libertação que suplante todo tipo de dependência e dominação, afirmando a autonomia dos povos.

É preciso vislumbrar o continente africano com novos olhos, buscando em mãe África inspiração para se repensar o humano e suas possibilidades. O Ocidente, que durante tantos séculos, impôs à África sua sórdida e impiedosa lógica de expropriação, buscando se apropriar de riquezas e força de trabalho, talvez agora possa voltar de maneira humilde e pacífica para a mãe África, compreendendo sua dor, o clamor pela vida, a paixão pelas cores, música e movimento, a espiritualidade que habita o âmago de cada um e redunda na voz calorosa, vigorosa e alegre de um continente que se abre para ensinar a profundidade de uma cultura múltipla e a coragem de muitos povos que transitam entre a luta contra a aniquilação e a afirmação pela vida.

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Doutor pela Universidade Católica de Braga (Portugal), Adelino Francisco de Oliveira

é professor do IFSP, Câmpus Piracicaba.

 

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