Acesso ilusório ao Poder Judiciário no Brasil

Acesso ilusório ao Poder Judiciário no Brasil

 

 

Todas as constituições democráticas, e portanto do mundo civilizado, contemplam um direito fundamental da pessoa que é o de não ser privada de seus bens e direitos sem ter a chance de por eles lutar perante um Tribunal imparcial.

No nosso caso, o Artigo 5º da C.F. do Brasil, contempla tal direito em seu Inciso XXXV “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, e ainda Inciso LV – “aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, constitucionalista brasileiro, refere-se à cláusula do dueprocessoflaw oriundo do Direito Inglês, que migrou para os Estados Unidos na emenda nº 5, e que “impede toda restrição à liberdade ou aos direitos de qualquer homem, sem intervenção do Judiciário, (…). Com isso, o princípio se torna mais sólido, já que impede que uma proposital alteração de estrutura do Judiciário esvazie essa garantia.”. (“in” Curso de Direito Constitucional, pg. 245, Ed. Saraiva, S.P., 1989, 17ª ed.).

Todavia, tanto este como outros constitucionalistas advertiam que tal garantia poderia ser apenas ilusória, mercê da malícia de governos mal intencionados ou totalitários, tal como ocorre hoje no Brasil, notadamente para a classe média e baixa, que vêm, estáticas e apáticas, os neo-liberais e portanto o “mercado”, surrupiar-lhes este simples e fundamental direito de forma sub-reptícia e desumana.

Em São Paulo, por exemplo, o valor do preparo recursal, ou seja, o que o cidadão tem de pagar para poder recorrer para segunda instância, foi elevado a partir de 2.016, de 2%para 4% sobre o valor da causa ou da condenação, conforme o caso, e o que é um desestímulo à que a parte continue lutando por seus direitos. Trata-se do estado da federação cuja taxa recursal é uma das mais elevadas.Ocorre que além desta, outras taxas iniciais já existem para promover a ação, como a de 1% sobre o valor da causa, havendo ainda a taxa de juntada do mandato judicial, mais a taxa de citação do réu.

Na Justiça Civil, os pobres, na acepção jurídica do termo, desfrutam da assistência judiciária gratuita, e nada pagam. Porém, a classe média, que não consegue obter este benefício, se vê hoje em dificuldades para demandar. Tais cobranças obviamente inibem aquela garantia constitucional aos remediados da classe média, que não podem pleitear assistência judiciária gratuita.

Não bastasse, o Código de Processo Civil de 2015, estabeleceu que se o cidadão promover ação e ganhar apenas em parte o que pedido, por exemplo, metade do que houvera pleiteado, irá, além de tudo, pagar mais honorários advocatícios de sucumbência ao seu adverso, sobre a parte da qual decaiu do pedido, em limites de 10% às 20% sobre o valor do quanto pedido e perdido.

E esta não era a regra anterior. O autor somente pagava honorários ao advogado do réu, quando tendo demandado, perdia totalmente, ou quase que totalmente, a ação, o que nesse caso, era razoável.

Todavia a mudança é que agora, mesmo o cidadão sendo constrangido a demandar para obrigar o devedor da obrigação a pagar,se, por exemplo, seu pedido estimado inicialmente foi em valor superior àquele que finalmente o tribunal reconhecer (o que quase sempre acontece), a diferença entre o que pedido e o que o judiciário concedeu, sofrerá aquela incidência de honorários de sucumbência em favor do advogado do réu. (do condenado).

Ora, se o réu já foi condenado, ainda que em pequena parte, é porque devia mesmo.  Porque razão, então, deverá ser aquinhoado ainda com a sucumbência mencionada, se o autor tinha razão em procurar o judiciário?

Tentemos explicar isso aos leigos. Se um cidadão entende que outro lhe deve R$100.000,00, seu advogado deverá pleitear o valor em juízo, e já recolher ao Estado as taxas judiciais de R$1.000,00, além da taxa de juntada de mandato judicial e a taxa para citação do réu, para propor a ação (algo em torno de R$1.200,00 no total).Por aqui já se começa a sentir como a classe média brasileira terá dificuldades para acessar a justiça, posto que um cidadão que ganhe R$5.000,00 por mês de salário, ou pouco mais, provavelmente não terá direito à assistência judiciária gratuita, e também poderá não ter como pagar as custas iniciais do processo. Já deve desistir de ir à Justiça aqui, ou seja, na primeira consulta ao advogado.

Mas continuemos. O cidadão, com esforço e sacrifício, obtém a quantia para pagar as custas iniciais e aviar a ação. Tendo obtido ganho parcial em primeiro grau, digamos R$30.000,00,e não se conformando, recorreu ao Tribunal, e para issoteve de recolher mais 4% sobre o valor da condenação, (mais R$1.200,00), ou o que for arbitrado pelo juiz para este fim. (Artigo 4º, inciso II, Lei 11.608/2003, alterada pela Lei 15.855/2015).Todavia ao final, a Justiça só reconhece que ele teria direito a receber mesmo os R$30.000,00. Agora, sobre a diferença entre R$30.000,00 e R$ 100.000,00(ou seja, sobre R$ 70.000,00) provavelmente haverá condenação da parte autora, a pagar ao réu, sucumbência entre 10% e 20%, que é a parte da qual decaiu.(A Justiça deverá fixar sucumbência também contra o réu e à favor do autor, sobre o que este ganhou. Ou seja, 10% à 20% sobre R$30.000,00. Bem menos, portanto, que os honorários de sucumbência conquistado pelo réu).

Significa, portanto, que o autor veio a juízo porque o mau pagador o obrigou, adiantou despesas em torno de R$1.200,00 para iniciar a ação, pagou eventualmente peritos (médicos, engenheiros, contadores, corretores de imóveis, etc…, para auxiliar o juiz na avaliação de alguma questão, algo em torno de mais R$3.000,00 por perito), depositou mais R$1.200,00 no curso da ação para poder recorrer,e agora, depois de ganhar a causa, deverá pagar ao réu entre R$7.000,00 (10%), e R$14.000,00 (20%) de honorários de sucumbência. E sem garantia de que as custas que adiantou lhe serão devolvidas, eis que se a sucumbência já foi entendida como recíproca, não deve reaver tudo quanto adiantado.

Mas o autor terá ainda que pagar os honorários de seu próprio advogado, que devem girar em torno de 20%, sobre o proveito econômico obtido com a ação, dependendo também do contrato firmado, e que poderia inclusive prever honorários iniciais para que o advogado principiasse os trabalhos. Dos R$30.000,00 obtidos na ação, vaticinamos assim restarem ao autor, uns R$10.000,00 líquidos. Se tanto! (pode ter Imposto de Renda, ainda).

Tratou-se, portanto, de uma “vitória de Pirro”, aquele personagem histórico que venceu a batalha, mas…, perdeu todos seus elefantes, ou seja, seu precioso exército. É, portanto, a vitória ilusória dos que “ganham, mas não levam”.

E não adianta arguir que neste caso a parte autora é que foi ambiciosa ao pleitear mais do que lhe seria devido.  De fato, ao propor ação, o cidadão e seu advogado não têm na maioria das vezes, ideia exata do “quantum” devido, porque há cláusulas de multa, pedidos de indenização por perdas e danos, de danos morais, além de juros e correção monetária, valores controvertidos ainda nos tribunais, e que dependem, além da interpretação do juiz, de perícias médicas, técnico-contábeis, de engenharia, etc… enfim, várias questões, e se o autor não as pleiteia, o juiz também não poderá depois, na decisão, conceder o que não foi pedido. (é a Lei processual). Logo, o autor acaba por ser praticamente obrigado a pleitear  tudo o que entende ser justo.Nada mais. Ocorre que o réu, ao se defender, também questiona todos os pedidos, como deve mesmo fazer, porque é a única oportunidade que terá para se defender, (é a Lei), e levando quase que invariavelmente o Juiz a acolher, ainda que parcialmente, a sua defesa, provocando o efeito mencionado.

Quem vai procurar o Judiciário?

E é isto mesmo que os neo-liberais esperam. Os comuns ou remediados, devem buscar fora do judiciário, ou as vias de fato, (vias de fato = resolver na “porrada”), como parece já ocorrer hoje nas favelas do Rio de Janeiro e São Paulo, ou, quando muito, um dos juizados “especiais”, ou câmaras de conciliação, que buscam a “conciliação” entre as partes, inclusive em alguns casos explorando gratuitamente a mão de obra de estudantes de direito (estagiários), e que não conseguem satisfazer, via de regra, aos jurisdicionados. Só os ricos, como os bancos, podem demandar, com “expertises” cuidando de seus interesses, porque lhes sobram meios.

No judiciário trabalhista, mercê da recente reforma retrô-liberal, o mesmo agora irá acontecer. É que pela nova lei o trabalhador igualmente deverá ser condenado a pagar honorários entre 5% e 15% para o advogado do banco, da multinacional, da grande empresa, dos “Joesley Batista”, das Lojas Riachuelo,etc…, se houver sucumbência recíproca.

Acontece que aqui, na trabalhista, muito mais que lá, na cível, dificilmente uma ação é julgada totalmente procedente.Sempre, portanto, o empregado, mesmo tendo sido constrangido a procurar o judiciário (sim, constrangido. Eu nunca vi um trabalhador dando piruetas de alegria por ter que ir à Justiça), deverá pagar honorários ao advogado do patrão (!?). E mais, mesmo sendo beneficiário da justiça gratuita, se tiver haveres em outro processo, poderá vê-los penhorados e destinados a este pagamento, mais custas (custas que aqui são de 2% sobre o valor da causa). Pois que mesmo reconhecido como pobre na acepção jurídica do termo, terá a execução contra si apenas suspensa,mas que irá ser retomada se no período de 02 anos que se seguirem, se lhe descobrirem com dinheiro para o pagamento da sucumbência. Enfim, em minha opinião, uma lei pornográfica,vergonhosa!“Data venia”, como fica bem dizer-se nestas oportunidades.

Quem precisa de juízes é o povo, e o povo pobre.

Mas o Estado neo-liberal, justamente por ter por prioridade os ricos, pode enxugar o Judiciário, porque disto só lhes resultarão vantagens (menos Estado, menos gastos públicos, mais dinheiro para o pagamento da dívida e dos juros ao setor financeiro). E os pobres, ora os pobres…

O que mais entristece nisso tudo, é o fato de constatar-se que a OAB que se notabilizou no passado na luta pelas diretas, pela igualdade de direitos entre os gêneros, entre raças, enfim, lutas libertárias das quais todos nós, advogados, podemos nos orgulhar, assiste agora pateticamente a tais maldades cometidas contra o povo brasileiro.

Esqueceram-se inclusive, que assim como no passado bradaram que advogados só existem em Estados Democráticos de Direito, e que portanto aquela luta pela abertura política era do povo sim, mas também dos advogados, que agora, igualmente, teriam por missão livrar o povo das amarras de leis que apenas dão a ilusão de livre acesso ao judiciário, e que na verdade decretam não só o fim do Judiciário e da profissão do advogado, mas principalmente, da esperança de justiça aos mais simples.

Pensamos assim urgir que organizações não governamentais comprometidas com causas populares, sindicatos de trabalhadores, e outras congêneres entidades, denunciem nos organismos internacionais, como a ONU, a OIT, os insistentes ataques contra a cidadania, contra os direitos fundamentais da pessoa que vêm sendo perpetrados contra o povo brasileiro, eis que esperar-se a sensibilidade deste congresso e presidente reacionários (aliados a certos governos estaduais, como o de SP), só irá aprofundar ainda mais o abismo que separa as classes sociais no Brasil, com ameaça à sobrevivência da própria democracia, como a História tem demonstrado seguidamente.

 


 

 

 

 

 

 

Alexandre A. Gualazzi é advogado e professor na UNIMEP.

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